domingo, 28 de junho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - BELÉM - FINAL


O trabalho não rendia.

Por mais que procurasse se concentrar, não conseguia tirar o pensamento da mulher na cama do hospital; precisava entregar o parecer de viabilidade pedido por Emília, mas nada conseguia avançar naquilo que queria; pensou em parar um pouco, dar uma volta, mas sabia que nada daquilo a aquietaria. Os olhos se voltavam para o celular, esperando qualquer notícia da neta de Albertina

Eram exatamente duas horas da tarde quando o celular vibrou e tocou sobre a mesa; Eliza prontamente identificou a ligação e atendeu, o coração acelerado esperando o pior.
- Dona Eliza, sou eu, Jane, neta da Dona Albertina. A vovó acordou e quer falar com a senhora; tem jeito de ser agora?
- Logo estou aí, Jane, é só o tempo de me arrumar e tomar um táxi

Eliza chegou vinte minutos depois , sendo recebida pela médica de plantão, uma moça de cabelos loiros curtos que passou a ela as informações sobre o estado de saúde da velha senhora.
- Ela acordou há mais ou menos quarenta minutos – disse sem pausar a voz – o quadro é estável, mas ela ainda está sem condições de ir nesse momento; precisa ficar mais um dia em observação para que possamos ter certeza de que o quadro se estabilizou completamente.
- Podemos vê-la agora Dra...?
- O meu nome é Laura Doyle; meu plantão se encerra daqui a duas horas; caso a senhora precise de mais informações estarei à disposição.

Eliza agradeceu a atenção e se dirigiu-se ao quarto onde Albertina estava internada; entrou no momento em que a neta arrumava algumas roupas numa sacola, possivelmente para lavar.
- Dona Eliza, que bom que a senhora veio, preciso falar muito com a senhora. É muito importante.
- Imagino que seja, Dona Albertina, mas não se exalte, precisa descansar para se recuperar mais rápido.
- Ligue não pra esses aí de jaleco branco – disse ela apontando para a enfermeira que acabava de entrar – eles não sabem de nada.

A enfermeira, pacientemente, ajustou o tensiômetro no braço de Albertina e começou a bombear, ajustando o medidor para sentir a pulsação; minutos depois levantou a cabeça e sorriu.
- 11 por 7; está muito bem! Logo a senhora vai ter alta - disse no mesmo sorriso.

A enfermeira saiu no mesmo passo silencioso, enquanto Albertina retomava a conversa.
- Eu tenho de pedir o seu perdão, porque eu não contei tudo a respeito da amizade entre o seu pai e o meu avô; fiquei desconfiada que a senhora fosse outro tipo de pessoa e queria paz na minha vida. Me perdoe.
- Não há o que perdoar, Dona Albertina; não dá mais mesmo para confiar em ninguém nesse mundo louco.
- Mas eu devia ter contado que conhecia o seu pai dede o começo, tinha resolvido isso logo.
- Agora isso já passou Dona Albertina, a senhora tem é que descansar.
- Mas eu quero que a senhora fique com a caixa da minha mãe; acho que é melhor que fique em boa mão e prefiro que seja a senhora que fique com ela; tomei a decisão de aceitar a ajuda que o seu pai deixou pra mim, mas não pro meu uso e sim da minha neta; ela merece mais do que ninguém, sacrificando a mocidade pra cuidar de uma velha como eu;
- Resolvemos isso depois; agora descanse.

Despediram-se com um abraço apertado e, logo depois de tomar as informações do estado geral dela pela Dra. Laura, preparava-se para ir embora quando o celular tocou; atendeu rápido sem identificar a chamada. Era Emília, procurando saber se ela precisaria do motorista para o dia seguinte e como estava o andamento do parecer sobre o projeto. Desconversando, Eliza disse que faltavam apenas dois dias para que concluísse tudo, igualmente declinando do motorista. Combinou de ligar assim que estivesse no flat.

No dia seguinte, telefonou para o hospital para saber se Albertina já tinha tido alta; por sorte, os papéis já estavam sendo emitidos e ela iria sair às nove e meia da manhã. Eliza chegou no momento em que ela estava assinando a alta; enquanto arrumavam a bagagem, ela se dirigiu à secretaria do hospital para assinar o pedido de autorização do convênio médico. No mesmo momento, ligou para o banco, onde já iria começar os procedimentos de transferência do dinheiro para a velha senhora.

Quando saiu, Albertina já estava no táxi, apenas aguardando por ela; entrou e deu o endereço ao taxista. As duas não trocaram palavra até chegarem; Jane desceu primeiro, o motorista ajudando a levar a bagagem para a casa, enquanto Eliza ajudava Albertina a descer. Já em casa, levaram-na para o quarto, onde a puseram na cama; já de posse da receita fornecida pelo médico, pediu a Jane o telefone de uma farmácia nas proximidades que fizesse entregas em domicilio. A jovem apontou para um pequeno panfleto sobre o criado-mudo, um anúncio de uma farmácia inaugurada recentemente na rua; lembrou-se então que o medicamento era controlado, a receita teria de ficar retida no estabelecimento; não era longe, apenas duas quadras da casa; voltou alguns minutos depois, já com a caixa de medicamentos nas mãos; quando voltou ao quarto para administrar o remédio, Albertina estava sentada na cama, com uma caixa de papelão coberta por um revestimento que lembrava um papel de parede antigo.
- Esta é a caixa de guardados da minha mãe, Dona Eliza, tudo o que a senhora queria saber está aí, entre esses guardados; fico a perguntar o interesse num monte de coisas velhas.
- É uma coisa que devo a meu pai. Uma longa história.
- Mais uma vez me perdoe por não ter contado o que eu sabia desde o começo, senhora, mas, sabe como é, quando a esmola é demais...
- Não se preocupe. Eu tomei todas as providências para que a senhora receba o dinheiro deixado por meu pai; tenho certeza de que será bem usado.
- Como eu disse, é pra minha neta, uma ajuda pro futuro dela e uma paga por ela ser tão dedicada e cuidar de mim.
- Eu queria que a senhora falasse mais a respeito de como conheceu meu pai, Dona Albertina
- É história comprida, mas eu falo uns pedaços. Seu pai veio aqui faz tempo, eu ainda era solteira, pra falar do meu avô; disse que tinha conhecido ele, que tinha morrido num hospital em São Luis do Maranhão e que estava providenciando um jeito dele ser trazido pra cá e enterrado aqui. De começo fiquei desconfiada, senhora, achando que era alguma pilantragem, até que ele mostrou uma foto do meu avô no hospital com ele, como se tivessem conversando. Ele me disse que quando pudesse iria ajudar de algum jeito. Me espantei quando recebi um telegrama de que o corpo do meu avô estava chegando e que eu devia me preparar para fazer o enterro; tudo foi feito no nome dele, até o jazigo aqui na Soledade; depois ele disse que viria e tentaria ajudar mais; depois disso não tive mais notícia e acabei esquecendo; nem tive tempo de agradecer pelo meu avô. As coisas estão aí, veja no que elas podem ajudar; sou muito grata por cuidar disso;

Eliza segurou a caixa com cuidado, receosa do papelão se desmanchar; sentiu, porém, que estava firme, como se fosse algo mais recente
- Não se apoquente, isso é coisa boa, coisa fina, que não se desmancha fácil como as coisas de hoje;

Eliza sorriu e abraçou Albertina com um carinho que há muito não tinha por alguém; não sabia explicar o gesto, ela tão hierática e formal com as pessoas; aceitou um café que Jane oferecera e sorveu prazerosamente, enquanto conversava de outros assuntos com a velha senhora. Por fim, se despediu dela, mas pediu à neta que mantivesse contato sempre que precisasse; iria ficar ainda mais alguns dias na cidade antes de voltar ao Rio, mas queria saber de cada passo da recuperação dela.

Ao chegar no flat , sentiu uma imensa vontade de nada fazer, de ficar apenas quieta, sem nada pensar ou fazer; tomou um banho, foi para o quarto, deitou-se e, no afã de querer o sono, sem saber nem sequer o porquê, chorou.

O parecer ficou pronto três dias depois, mas chegou igualmente a notícia de que, devido a alguns aspectos não explicados, o projeto teria de ser adiado; Eliza tentou descobrir o que tinha acontecido, mas desta vez encontrou uma Emília evasiva, de expressão contrafeita, como se algo importante não tivesse seguido adiante. Conversaram rapidamente, a outra simplesmente agradecendo pelos serviços e passando o comprovante de uma ordem de pagamento em que reembolsava as despesas que ela pudesse ter feito;

Era um fim de tarde nublado quando Eliza tomou o taxi do flat para o aeroporto de Val de Cans; passou a manhã inteira na casa de Albertina, onde terminou a conversa anterior e entregou a ela o comprovante da transferência do dinheiro deixado por Silvano; abraçou-a longamente na hora da partida, ambas prometendo não deixar de mandar notícias; depois, despediu-se de Jane e tomou o táxi para o aeroporto. Muito mais coisas iriam contar mais histórias....

quinta-feira, 25 de junho de 2015

ESCRITOS AVULSOS - SOMOS TODOS HERÓIS

Hoje levantei fazendo uma reflexão muito interessante; lembrei da pergunta que me fizeram na copa do mundo (assim mesmo em minúsculas, para salientar a importância de tal evento para mim) de qual era a melhor imagem que eu podia usar pra retratar o Brasil; eu respondi de bate-pronto(?!!!) “A Seleção”, vi o sorriso de ufanismo barato que ele me lançou, mas o desarmei dizendo: “um desgoverno, onde apenas um recebe a responsabilidade dos outros dez, e, quando este sai por um motivo qualquer, o resto se desnorteia”.
Eu tinha respondido isso antes do malfadado 7 a 1.
Agora, em nova aventura na copa américa, o salvador da pátria se destempera e novamente abandona o resto do grupo, para desespero dos que ficam, ou seja, sempre, em nossa história, estamos com uma pessoa que, ao atrair tudo para si, cria uma relação danosa de dependência com as esperanças do povo, que podem ser destruídas ao menor gesto errado deste indivíduo, o tão sempre “salvador da pátria”, especialmente se ele abandona o barco, ou simplesmente, não faz o menor esforço para impedi-lo de afundar.
Ainda assim, os jogadores de futebol são os heróis do momento, os ícones da brasilidade; isso serve aos que, buscando qualquer ópio que distraia o povo, aposta nesses levantadores de ibope para mascarar o que realmente ser levado em conta – a devolução do dinheiro roubado aos cofres públicos e a punição dos responsáveis.

O que então fica para nós? Apenas levantar bandeirinhas e fingir que nada acontece porque nos tornamos milhões de técnicos? Nós somos os heróis! Nós, que trabalhamos em corrida contra o relógio, contra a corrosão de salários, o sucateamento e a defasagem da educação e da saúde, a corrupção já quase se tornando institucionalizada; precisamos apenas de, como uma vez ouvi de um senhor num evento, “ter unanimidade por apenas um dia”, e mudar nosso país pra melhor; não deixar a responsabilidade nas mãos de um, que pode simplesmente pouco se lixar para o resto e apenas se beneficiar, mas tomar a responsabilidade do país enquanto cidadãos, sendo de todos a vontade de transformar e mudar para melhor; tomemos então o país das mãos desse desgoverno, e o façamos um país de verdade. Assim agem cidadãos de verdade; esses sim, os verdadeiros heróis

ESCRITOS AVULSOS - INTRODUÇÃO

Caros Amigos

Hoje começo, entre os capítulos da série que escrevo, minha produção de textos avulsos, onde crônica, microcontos e versos irão igualmente fazer parte deste universo blogueiro; de elementos do cotidiano a viagens bem pra lá dos limites, é um cantinho mais livre, de palavras soltas e poesia idem, mas igualmente com um toque de paixão, para que vejam quão longe a palavra pode viajar...
Espero que os todos se sintam à vontade e apreciem. Sejam Bem-Vindos!!!

domingo, 21 de junho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - BELÉM - PARTE V


No dia seguinte não teve tempo para pensar em outra coisa senão nos croquis que Emília havia enviado; imaginava como poderia viabilizar aquele projeto, que tinha, como sói acontecer nesses casos, forte marketing político; a amiga a visitou na parte da tarde, onde aproveitaram para conversar sobre a participação na empreitada.
- Bom, Eliza, não é necessariamente o seu escritório, mas você; quero que você supervisione tudo do começo ao fim, sem deixar um detalhe de lado.
- E quando os trabalhos estão previstos para começar?
- Logo que você examine tudo para dar seu parecer. A licitação foi aprovada, e, nesse caso, você tem de apresentar um orçamento para que tudo fique em ordem e possamos iniciar.
-Precisarei de pelo menos uma semana para examinar tudo. Preciso igualmente examinar os locais que serão de alcance do projeto, para determinar um parecer mais exato.
-Sem problemas, cara amiga; agora, porque não jantamos e falamos de amenidades? Por exemplo, se tem aproveitado para conhecer a cidade, se não se importar, é claro.
- Nem um pouco – sorriu, relaxando a expressão –podemos jantar aqui mesmo? Não estou com muita disposição para sair.
- Vamos encomendar algo para jantar então; conheço um restaurante japonês bem tradicional na cidade, podemos pedir algo de lá.

Eliza assentiu com a cabeça; estava mesmo indisposta, mais pelas coisas que martelavam sua cabeça do que pelo cansaço; adorava comida japonesa e iria aproveitar bem o jantar. Só esperava que a conversa não fosse desagradável...

Emília, de pronto, sacou do celular e discou o número do restaurante; em minutos já havia feito o pedido e ligava para que Jeremias, o motorista, fosse buscar a encomenda, dispensando o entregador. Vinte minutos depois o interfone anunciava a chegada da refeição, que foi muito bem consumida pelas duas, entre conversas entrecortadas. Mais uma vez ela perguntou do passeio, se tinha apreciado as construções da cidade velha e se tinha gostado da atmosfera da cidade. Eliza procurou ser solícita sem necessariamente ser muito explicita, pois sabia que ela quereria saber das visitas ao bairro da Pedreira; mesmo correndo o risco da desconfiança, tinha pedido ao motorista que fizesse discrição do que havia ocorrido.

O jantar tinha corrido bem.

Despediram-se num abraço cordial, combinando para, dentro de dois dias, visitarem o local do projeto; Eliza estava de bom humor e sorria quando acompanhou Emília até a porta...

Na manhã seguinte, não ligou requisitando novamente Jeremias; queria ir na casa de Albertina sozinha, sem qualquer pessoa estranha perto; queria ter tempo de sobra para conversar mais, saber de mais coisas da ligação do seu pai com o avô daquela senhora. Saiu do flat logo depois do café, tomando um táxi de um posto próximo; pediu ao chofer que fosse para o endereço o mais rápido possível, pois tinha um compromisso urgente lá; tinha um pressentimento estranho, um algo dentro de peito que não sabia o que era, mas que crescia à medida que ele achegava mais perto.

Ao chegar viu a neta na entrada da casa, num gesto de ansiedade contida, como se esperasse algo acontecer.
- O que está havendo? Onde está Dona Albertina?
- Ela está muito doente, senhora, liguei pro SAMU mas estão demorando demais; a senhora pode ajudar, por favor? – disse a jovem, os olhos já marejados – ela está assim desde ontem, não sei mais o que fazer.

Eliza então ligou para o serviço médico de emergência de seu convênio, e entrou na casa, guiada pela jovem; logo ao chegar no quarto, conteve uma expressão de horror...

Dona Albertina estava na cama, uma compressa sobre a cabeça, respirando com dificuldade; a expressão parecia ter perdido toda a cor, apenas os vivos olhos verdes pareciam ser mais fortes do que o resto dela; esses mesmo olhos se avivaram mais ainda ao ver Eliza chegar; ela quis gesticular, mas teve suas mãos contidas
- Por favor Dona Albertina, relaxe, o socorro já está vindo

E, como de praxe, a ambulância do convênio chegou bem antes, os paramédicos fazendo o primeiro atendimento e colocando a senhora na ambulância; Eliza resolveu acompanhá-la, o veículo tomando a direção do Hospital Central...

Foram exatamente duas horas de uma espera terrível; Eliza apenas acompanhava o vai-e-vem de médicos e enfermeiras, sem nenhuma nova do estado de saúde de Dona Albertina; entre um e outro copo d’água, ela e a jovem neta compartilhavam a ansiedade por notícias; enfim, um jovem medico trouxe as tão esperadas novidades
- A senhora é a Dona Eliza? – Perguntou calmamente o médico – tenho já o boletim do estado de saúde de Dona Albertina; peço, para que ela se recupere melhor, que a senhora não faça alarme do que vou dizer.

A expressão grave no rosto do jovem médico não era, de forma alguma, portadora de boas notícias; Eiiza concordou e esperou pelas palavras do médico
- Dona Albertina sofreu um sério acidente vascular, causado por um aneurisma; conseguimos contornar o problema, mas não sabemos como ela ficará; ainda é cedo para se dizer se ela terá sequelas ou pode se recuperar de todo; só nos resta agora esperar pela recuperação plena.
- Podemos falar com ela agora doutor? Perguntou ansiosa a jovem
- Ainda não, pois ela está sedada e continua em observação; só podemos deixar que um acompanhante fique com ela esta noite; regras do hospital, espero que entendam;
- Fique então – disse Eliza à jovem – eu preciso descansar um pouco depois de tudo isso; esse é o meu número de celular; me ligue assim que precisar de alguma coisa, eu virei de imediato.

A jovem guardou o número no bolso e acompanhou o médico ao quarto de Dona Albertina; Eliza os viu se afastar até virarem um corredor que conduzia à ala dos apartamentos; depois tomou um táxi de volta ao flat, onde, logo ao chegar, serviu-se de uma generosa dose de uísque com gelo, no intuito de forçar o sono. Sabia que ele iria demorar a chegar.

E, de fato, não chegou

domingo, 14 de junho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - BELÉM - PARTE IV




O cemitério da Soledade tinha um ar de deslocamento em relação à crescente modernização da cidade.
Antes o cemitério central, foi pouco a pouco substituído por campos santos mais modernos e mais afastados; parecia ainda difícil, mesmo com as pretensas cientificidades, pensar na morte como um fator constante, imutável na própria vida; daí a lonjura cada vez maior dos chamados “últimos lugares de repouso”

Eram exatamente sete horas da manhã quando Eliza atravessou o portão de ferro trabalhando em intrincadas volutas, num estilo que não mais se via tão facilmente; percorreu o corredor central sem pressa, pois ainda tinha trinta minutos antes de se encontrar com Albertina. Notou o estilo elaborado e sofisticado de alguns dos túmulos, claramente de famílias abastadas da época; uns muito bem cuidados, com ramalhetes de flores frescas ainda orvalhadas, outros com evidentes marcas de que há muito não vinham entes queridos zelar por eles; andou devagar , notando idiomas estrangeiros nas inscrições, notadamente em inglês, francês e alemão; num deles notou que uma família inteira, de origem inglesa, tinha sido enterrada com diferença de poucos dias, possivelmente vitimados por alguma doença tropical que não tinham defesa; em outro, um jovem que mal completara vinte e um anos, falecido em Paris, tinha sido transladado um ano depois de sua morte e enterrado com os pais, que faleceram um bom tempo depois; ficou a perguntar-se o que o teria levado em tão prematuro viço de idade, quando um leve cutucar tirou-a de suas indagações.
- Bom dia, Dona Eliza, tudo bem com a senhora?
- Tudo bem, sim, Dona Albertina, espero não tirar a senhora de sua rotina vindo nessa hora.
- Não mesmo! Aqui neste lugar de paz poderemos conversar melhor. Não se preocupe, deixei minha neta comprando umas flores pra pôr no jazigo do meu avô e de minha mãe

Sentaram-se num dos bancos de pedra que ladeavam uma pequena praça onde uma grande cruz demarcava o centro geométrico do local, onde a poucos metros, uma capela dominava o restante.
- Fiquei tentando atinar o que o meu avô teria com o seu falecido pai, Dona Eliza, mas não consegui pensar qual razão ; a senhora saberia de alguma coisa?

Eliza, ainda um tanto desconfiada, não quis se abrir imediatamente, mas, assim que a conversa fluiu, ela percebeu que não podia mais ficar apenas tateando para descobrir a verdade; precisava ir direto ao ponto, entre tantas outras coisas.
- Bem, Dona Albertina, ele me disse que o seu avô deixou algumas coisas pra ele, que ele deveria contar a história de tudo o que ele viveu

Albertina sorriu de forma condescendente, com um ar de compreensão veneranda, como um adulto a considerar o deslumbramento das descobertas de um adolescente.
- Minha mãe falava das maluquices dele, de guardar as coisas num baú velho; ela se perguntava pra que ele fazia aquilo; ele dizia que alguém “com mais leitura” que ele iria contar a história de todas aquelas coisas – disse, entre sorrisos – coisa de velho, a senhora sabe.

Eliza ficou em silêncio. Lembrava do pai, com o hábito de guardar a menor tira de jornal que tivesse importância, objetos que, pra ela, não tinham a menor serventia. Apenas assentia com a cabeça enquanto Albertina falava.
- Pois é, minha mãe pelejou muito com ele pra que largasse mão dessa doidice, mas ele nem aí pros falares dela; mas quer dizer que ele então deixou o baú pro seu pai e daí pra senhora; mas que valor ele dava pra isso, pra deixar tudo pro seu pai?
- É o que quero saber, Dona Albertina; o que liga tanto meu pai ao seu avô
- Pouco sei dele, pois eu era menina quando ele morreu; mas tenho muita coisa guardada na minha casa, lembrança dele que ainda ficou lá. A senhora pode tirar um dia e ver tudo; mas lhe digo que vai levar tempo; a única coisa que minha mãe dizia é que ele tinha lutado numa guerra num lugar chamado Paraguai no tempo dele de moço, e olhe que ele morreu muito velho, com cento e tantos anos; venha, deixe eu lhe mostrar onde ele está.



Caminharam alguns metros até uma pequena alameda, onde uma fileira de pequenos túmulos fazia frente com outra alameda onde túmulos mais suntuosos, de clara inspiração europeia, ladeavam um jardim pequeno; de início, Eliza julgou tratar que o túmulo do amigo do pai ficasse nessa extensão de locais mais simples, mas quando Albertina apontou para o local onde ficava a sepultura, não pôde deixar de expressar espanto; o túmulo era típico de uma família abastada, embora desse pra notar que era mais moderno em alguns aspectos , como a grade mais simples e sem mármores encimando a entrada, apenas uma placa de estuque onde se lia “JAZIGO PERPÉTUO DA FAMÍLIA RIBEIRA”. Albertina tirou do bolso do vestido uma chave, que usou para abrir a porta do jazigo; a neta esperava com vários ramalhetes dispostos nos braços; Albertina tomou-os e se dirigiu ao interior do local, onde começou a substituir os murchos pelos frescos. Eliza ia logo atrás dela, notando as placas onde se lia: ”ANTÔNIO RIBEIRA, 01-12-1851/24-08-1956”, depois ao lado se lia: “CECILIA RIBEIRA 02-05-1878/09-09-1885” e , por último, “AMÁLIA RIBEIRA BERGANTIM, 03-04-1874/12-03-1961". Ela reparou no retrato acima da sepultura do amigo do pai; era o retrato da época da Guerra do Paraguai e o mostrava jovem, altivo e com vivos olhos verdes que pareciam devassar completamente quem o fitava; “então este é você, Antônio Ribeira, finalmente o conheço”, pensou, de si para si...







Créditos - Google Images

domingo, 7 de junho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - BELÉM - PARTE III


O Bairro da Pedreira era um dos bairros mais pitorescos e boêmios da capital paraense.

Conhecido como “Bairro do Samba e do Amor”, sempre teve fama de lugar despojado e de ambientes descontraídos, onde sempre havia gente se divertindo e os bares atraíam muita gente durante os fins de semana


Mas não havia muito movimento nas ruas quando ela chegou, talvez porque fosse ainda meio de semana; só os locais já ensaiando sua diversão. Jeremias percorria o local devagar, prestando atenção aos lugares que se lembrava, para localizar o endereço que ela passara a ele.
- A senhora está certa do endereço, Dona Eliza?
- Estou sim, Jeremias; Travessa Lomas Valentinas 483, a não ser que aquela afilhada dela tenha mentido.
- Não sei não, senhora, aquela mulher parecia ser tinhosa

O motorista continuou guiando devagar, prestando atenção nos números, até que percebeu um sobrado, pintado de branco com azulejos escuros e beiral, destacado das demais casas baixas da rua; conferiu o número e parou em frente; Eliza desceu e tocou a campainha; não demorou muito uma jovem de cabelos negros compridos e olhos verdes veio até a porta.
- Bom dia, estou procurando Dona Albertina Ribeira, ela mora aqui?
- Mora sim, senhora; ela é minha avó; espere um minuto que eu vou chamar,

Eliza fez um sinal para Jeremias de que estava tudo bem; ele já tinha encontrado alguns conhecidos e já entabulava uma conversa, enquanto ela esperava; logo uma senhora de porte altivo, cabelos brancos amarrados num coque, veio até a porta.
- Bom dia, moça, queira entrar; minha neta me disse que a senhora queria falar comigo? Posso saber o motivo?
- Vim da parte de meu pai, Silvano Tomaz, que conheceu um parente seu, Antônio Ribeira. Sua afilhada me passou o seu endereço e lhe manda lembranças
- Ele era meu avô sim, senhora – falou em tom suave, mas seguro, ignorando completamente a menção da afilhada – como o seu pai conheceu ele?
- Faz muito tempo, em São Luís do Maranhão; ao que parece meu pai o ajudou e tinha grande estima por ele.
- Eu era ainda meninota quando ele morreu, mas minha mãe falou uma vez desse amigo dele...como é mesmo o nome?
- Silvano, Silvano Tomaz
- Ah, sim, ela me falou uma vez; um senhor que parecia ser jornalista, não é mesmo?
- Sim, meu pai era jornalista; na época ele ainda era um jovem sem muita experiência.
- E o meu avô era bem velho já naquela ocasião, minha mãe me contava. A senhora aceita um café? Acabei de passar. Mas venha pra sala, a gente conversa melhor
- Vou aceitar sim, obrigada
Eliza observou-a servir o café, cujo aroma era muito atrativo; depois de servir, sentou-se e começaram a conversar.
- Mas o que a senhora traz do seu pai pra mim? Estou ainda meio encafifada.

Eliza tirou da bolsa o envelope que tinha tirado da caixa entregue por Lisandro e falou de todos os detalhes da transferência legada pelo pai em testamento, enquanto sorvia o café; Albertina assustou-se com tudo aquilo, procurando saber o porquê da generosidade daquele senhor, por mais que possa ter sido amigo de seu avô; então lembrou-se de uma das últimas conversas com a mãe falando desse amigo, que tinha mesmo coberto o pagamento do traslado e do enterro do avô no cemitério da Soledade; onde a mãe também estava sepultada.
- Senhora, não me entenda mal, mas não sei se devo aceitar essa generosidade – disse Albertina, espantada com tudo aquilo - é muito para uma pessoa como eu; a senhora viu que minha vida é simples, de aposentada; minha neta mora comigo aqui e me ajuda, a senhora pode ver; não posso me aproveitar do seu pai, mesmo que ele tenha sido muito amigo do meu avô
- O meu pai deixou em testamento esse dinheiro, Dona Albertina, e ele fez questão de que eu pessoalmente entregasse a ordem de pagamento pra senhora; isso foi a vontade expressa dele; uma carta dizia que era uma obrigação que ele tinha com o seu avô.
- Ele foi um homem que lutou muito, senhora – continuou Albertina, recompondo-se do espanto – sempre foi. De jamais deixar faltar nada pras filhas. Ele teve duas, minha mãe e uma tia mais nova, que morreu de cólera ainda menina; minha mãe guardou muita recordação, acho que ainda tenho tudo numa caixa que guardei. Amanhã mesmo vou levar flores na sepultura dele e de minha mãe lá na Soledade. A senhora não quer ficar pra almoçar? Estou fazendo um guisado de frango caipira.

Eliza olhou para o relógio de parede. Quinze para o meio-dia. Ela declinou do convite, mas disse que encontraria Albertina no dia seguinte, se ela não se incomodasse. Queria saber mais sobre a ligação de seu pai e Antônio Ribeira. Iria resolver seu assunto com Emília e iria mais a fundo na história
- Não, não me incomodo não; mas vou pra Soledade logo de manhãzinha, porque de lá já passo pro mercado pra comprar umas coisas pra casa, a senhora sabe.
- Não há problema, dona Albertina, eu a encontro lá; a que horas?
- Cuido de chegar cedo; sete e meia estaria bom?
- Sem problema para mim. Encontro a senhora lá. Obrigado pela conversa e pelo café.
- Desculpe pelo espanto, senhora, mas essas coisas não se dão assim todo tempo
- Eu entendo, não se preocupe. Até lá.

Eliza pediu a Jeremias que a levasse em um bom restaurante no centro; ele a levou a um que ficava perto do Forte do Castelo, de onde tinha sido fundada a cidade; pediu uma refeição leve de frutos do mar para ela e para o motorista e, depois do almoço, pediu que a levasse em casa; teria muito o que pensar...


Já no apartamento, espalhou os croquis pela cama e examinou cada um deles; eram projetos ambiciosos, e, se realmente saíssem do papel, seriam o espelho de uma política sensata de preservação funcional do Patrimônio Histórico; embora admirasse de cara o arrojo do projeto, ela bem sabia que serviria mais pra vitrine política de alguns do que qualquer outra coisa; mas decidiu examinar minuciosamente cada dum deles, a fim de dar um parecer ponderado.

Mas não deixava de pensar um Albertina Ribeira, e na amizade de seu pai com o avô dela...