sábado, 25 de abril de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O SUBSTITUTO - PARTE II




Chegaram pontualmente às oito; Jerônimo, de braço dado com Luiza, seguia os pais logo atrás. Adentraram o amplo vestíbulo, adornado com pinturas de paisagens campestres e porcelanas de Sévres colocadas nos cantos ladeando cadeiras estofadas em veludo bege; um escravo de libré indicou a direção da sala de visitas, onde o Barão já esperava; homem já entrado em anos, ostentava sobrecasaca escura com gravata em tom solene azul escuro, destacando um alfinete de gravata de pérola e ouro; a mão direita pousava sobre o braço de uma das poltronas, a cabeleira densa e a barba hirsuta imaculadamente brancas, mascaravam uma energia que não tinha igual; feitorava ele mesmo as fazendas de sua propriedade, mas sabia igualmente manter um estilo elegante. Apertou calorosamente a mão do pai de Jeronimo, que respondeu da mesma forma

- Bem-vindo caro amigo, é sempre um prazer recebê-lo; meus caros, estejam à vontade; os cavalheiros desejam algum aperitivo? Charutos?



Jerônimo e o pai aceitaram a oferta; o escravo trouxe então uma garrafa de cristal e duas taças junto com uma caixa de pinho, de onde cada um tirou um charuto; a Baronesa , Luíza e dona Lídia passaram à sala contígua, deixando os homens à vontade para conversar
- Parece que vamos ter guerra, meu amigo – disse o Barão em tom sério – o documento foi lido no gabinete e submetido à sanção de Sua Majestade Imperial, que, como seria lógico, o aprovou; mas o que andei sabendo é que nosso exército não é tão forte quanto se pensa; soube igualmente das brigas entre Caxias e Polidoro, em que um quer tempo para aparelhar e treinar o exército e outro quer ação já; não se comenta outra coisa na Corte.
- Já soube disso também, Barão; o senhor acredita que o meu filho queria cometer a sandice de se alistar? Chamei-o às falas para que não fizesse essa besteira.

Jerônimo controlou-se para não exasperar com o pai; queria responder à altura, falar do que sentia naquele momento, mas o pai falava como se ele não existisse ali. Conteve o impulso de retrucar , em respeito à casa do Barão.
- Isso é assim mesmo, amigo; nós já fomos jovens, cheios de vontade e de ímpeto para fazer as coisas; mas os anos nos ensinam maturidade e bom senso; confie em seu filho, tenho certeza de que ele não vai decepcioná-lo; não é mesmo, jovem Jerônimo?
- Sim, senhor Barão, pode confiar que sim – respondeu, contendo a ira.

Um toque de sineta interrompeu a conversa, avisando que o jantar estava servido; o Barão apreciava muito os peixes do rio Paraíba, e o jantar era pintado ensopado com vinho branco, servido com molho de ervas; frangos fritos em azeite de oliva e um consomê especial  do mesmo peixe, muito apreciado pelos convidados; a conversa girou em torno da última viagem de Luiza à França, em que ela contou das últimas da grande cidade, desde a moda aos teatros e galerias de arte; a Baronesa e D. Lidia escutavam atentas, enquanto o barão, sobrolho levantado, não dava tanta atenção assim; ele tinha reserva em relação a mulheres assim tão viajadas, pois achava que tinham “liberdades demais”.

Jerônimo , por sua vez, extasiava-se a cada detalhe de bulevares, galerias e lojas charmosas; a voz de Luiza fazia com que o tempo não passasse; ficaria uma eternidade ali, escutando tudo o que ela dissesse; o fato dela ser como era o encantava ainda mais. Já tinha até esquecido tudo o que ocorrera entre ele e o pai, enlevado nas palavras dela.


Os convidados, depois do jantar, foram levados a uma sala anexa, onde esperavam bolos e café fresco, passado de pouco; o Barão e Manuel Fogaça conversavam em voz baixa, de vez em quando lançando um olhar a Jerônimo, que apenas notava a presença de Luiza na sala; de resto, a conversa fluía. O Barão, então, chamou Jerônimo para um lado da sala, ao lado do pai, e o encarou com um olhar sério.
- Então, Jerônimo, estivemos conversando, seu pai e eu; vamos resolver seu problema. Contrataremos um substituto para que ele cumpra o serviço por você; é perfeitamente legal e não prejudicará sua carreira.

- O quê?? – perguntou , perplexo.
- Um substituto cumprirá o serviço por você e não precisará se envergonhar disso; você é muito mais necessário aqui do que no campo de batalha, meu jovem; há um futuro brilhante esperando você, e tenha certeza de que não é se ferindo à bala ou a lâmina que terás louros de glória.

Jerônimo ficou mudo; então era assim! Uma outra pessoa iria em seu lugar cumprir o dever que era dele, ir ao campo de batalha e se ferir enquanto ele ficava! O simples pensamento o enojou, mas ele acedeu no momento, procurando ver os desdobramentos do que viria;
- Muito agradecido, Barão, será um favor que deverei – disse aliviado Manuel Fogaça.
- Ora, amigo, eu que lhe devo tantos favores! Considere como um favor de irmão.

Despediram-se já ia noite alta. Jeronimo conversou ainda alguns minutos com Luzia antes de ir, pois teria de levantar cedo se não quisesse perder a caleça para Campinas e de lá o trem para São Paulo.
- Então vais; parece que os argumentos de teu pai e do Barão te convenceram, ou algo me diz que posso estar errada?
- Apenas não provoquei tempestade por enquanto; quero amadurecer mais minhas idéias.
- Ah, mon enfant terrible! – disse ela num sorriso – veja lá o que vais decidir! Não esqueça de jamais deixar de usar o broche junto ao peito, para protegê-lo.
- Jamais me esquecerei disso, jamais.

Então, num arroubo que ele depois custou a se reconhecer fazendo, beijou-a.


A viagem de volta para São Paulo foi cheia de pensamentos e indagações. “Um substituto, como é que eles podem fazer isso?”, ficou a se perguntar enquanto a cidade aparecia no horizonte...

Consultou os compêndios assim que chegou; queria saber se havia amparo legal naquilo que o pai e o Barão tinham resolvido; para sua estupefação, verificou que essa saída realmente existia; o substituto poderia sim, cumprir o turno de serviço no lugar dele, com o pagamento de uma taxa, sessenta por cento para o dito substituto, quarenta por cento para a circunscrição militar responsável pelo alistamento.

Encontrou as Arcadas agitadas, com os estudantes fazendo listas de alistamento e alguns já de pena em punho, escrevendo artigos virulentos criticando a postura militar frente ao conflito; já se sabia que o conflito entre Caxias e Polidoro descambara em outros desdobramentos, com a Guarda Nacional se colocando à parte da convocação do exército, simplesmente pela justificativa de ser uma “agressão externa”, pois seu papel era, em essência, conter ameaças “domésticas”, tal o escopo criado pelo finado regente Feijó; isso causou uma celeuma que cindiu o conselho de ministros e nem mesmo o Imperador, com sua influência, conseguiu conter.

Sentou-se num dos bancos do pátio interno e meditou sobre a situação; pelo que viu , teria de haver anuência entre ele e o substituto para que o acordo fosse feito; assim, ficou a pensar o que poderia fazer para reverter ou mesmo se aproveitar da situação para enganar o pai e o Barão; queria lutar e não seria nenhum substituto que o faria mudar de ideia.


De repente, sua mão foi, como num reflexo, para o broche com o Menino Jesus de Praga que ela lhe dera; tocou-o de leve, como que quisesse evocar a lembrança daquele beijo; ficou a pensar se ela ainda quereria falar com ele depois daquele arroubo; no mínimo talvez merecesse uma bofetada por tal disparate; desfez tal pensamento e ficou a maquinar o que poderia fazer...

(Continua...)

Créditos das ilustrações: Google Images/ Blog Construindo Victoria)

sábado, 18 de abril de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O SUBSTITUTO - PARTE I


Manuel Fogaça estava celebrando.

O filho Jerônimo iria ingressar no curso de direito na famosa Faculdade do Largo de São Francisco e isso o deixava orgulhoso, pois sempre lutara muito pelo futuro dos dois filhos; Leandro, o mais jovem, se preparava para a carreira eclesiástica, sendo sua vocação desperta muito cedo; o irmão mais velho via aquilo como um desperdício, pois sentia a personalidade inteligente e sensível do irmão, mas a vocação dele saltava aos olhos e ele sabia que era o caminho que iria abraçar; aos treze anos, já era postulante no seminário do Caraça, um dos mais prestigiados que existia.



Era uma tarde refrescante, o vento agitando as janelas da casa de morada inteira na Praça Anchieta, no centro de Jacareí; a praça era dominada pela imponente matriz e pelo palacete do Barão de Santa Branca, o rico cafeicultor que dominava a economia e a política locais; A família de Jeronimo tinha relações com a do Barão e eram amigos de longa data; Manuel, juiz de Órfãos e Ausentes da cidade, tinha tido toda a carreira como advogado e depois como magistrado incentivada pelo Barão, que admirava a maneira dedicada como ele conduzia sua judicatura.


Pai e filho fizeram mais um brinde antes de se dirigirem à sala de jantar, onde Lídia, a mãe, preparara um guisado com vinho madeira, cujo aroma guiou os dois até a mesa, onde o irmão mais novo já esperava; o jantar foi servido e a conversa continuou animada, com o pai imaginando os passos do filho na carreira, até chegar a uma magistratura ou mesmo ao cargo de procurador, igualmente respeitado. A mãe observava o levantar de sobrancelhas e o sorriso amplo do marido, enquanto igualmente fitava a face feliz de Jeronimo, que ansiava já estar em São Paulo, começando os estudos e ajeitando a vida. Ficaria tudo mais fácil, pois a estrada de ferro já estava quase concluída, o que reduzia os rigores da viagem.


Jerônimo apenas dormitava quando a mãe entrou, carregando um castiçal na mão; ele conhecia bem aquele gesto, tantas vezes repetido quando queria abrir o coração com a mãe em coisas que sabia que o pai não poderia entender; dessa vez, porém, ele não precisou sinalizar para a mãe, numa linguagem que só eles entendiam; ela tomou a iniciativa de ir até o quarto dele, se aproveitado do sono pesado do marido e do filho mais moço; sentou-se no pé da cama , como sempre costumava fazer , desde os tempos em que ele era criança e Leandro ainda não era nascido
- Boa noite minha mãe, sua bênção
- Deus te abençoe meu filho, e te guie nessa jornada que vais começar – respondeu a mãe, sondando o filho – mas algo te inquieta, me diz o que vem no teu coração
- Apenas o receio de não ser tão devotado quanto meu pai, minha mãe; tenho medo de decepcioná-lo, de não ser o que ele espera.
- Teu pai sabe e confia em ti; se chegaste até onde chegaste não é porque tiveste menos. Tens talento e vais longe. Não precisas ter medo
- Mesmo assim, mãe esse receio não me abandona,
- É apenas o medo de ires a São Paulo que te assoberba. Dorme e isso passa.

Despediu-se do filho com um beijo e mais uma vez deu a ele a bênção; nada disse a ele, mas algo a apertava idem, o coração em presságio constante. Por isso tresnoitara e não dormira, pensando nesse inquietar que soava como aviso.

A primeira visão da capital da província o chocou, mas logo ele se viu na direção da faculdade de direito, o prédio imponente próximo ao Largo da Sé, cujas arcadas já tinham visto passar algumas gerações de estudantes que se não deixaram marca, só o fato de estar lá já os fazia parte de um clube fechado, seleto, de idéias e talentos; sabia que seriam cinco anos de estudo árduo, difícil, mas que o fariam trilhar um caminho que poucos faziam, com portas abertas para várias carreiras à escolha; queria, acima de tudo, orgulhar o pai, que o veria como o próximo juiz da cidade. Pensava no irmão Leandro, que uma semana antes tinha ido para o Caraça, onde só sairia ordenado; viu a mansidão no rosto, o traço resignado da fisionomia, enquanto a carruagem se distanciava; seu acenar de mão já parecia uma benção.


Os dois primeiros anos foram de precioso aprendizado; dominara bem o direito romano, a filosofia e as disciplinas específicas, tornando-se, se não o aluno mais aplicado, pelo menos um dos que não levaria bomba; a maior parte dos aluns não simpatizava com o estilo mais reservado dele; fizera amizade com poucos, um deles Joaquim Madeira, um maranhense de Caxias, que era filho de um comerciante de algodão e representante comercial de firmas inglesas da província; junto com ele, um carioca, Marcílio, de família influente em Valença, sendo o pai, assim como o de Jerônimo, Juiz de Órfãos e Ausentes da comarca.

A calma, porém, foi interrompida por um alarido que tirou os estudantes de suas salas; Joaquim vinha correndo com um jornal, que estampava na primeira página a declaração de guerra do Brasil ao Paraguai, por causa do apresamento do navio Marques de Olinda, juntamente com a prisão do Governador da Província de Mato Grosso; já circulavam rumores das tensões nos altos escalões da Corte; Manduca Medeiros, quartanista, cujo pai era um dos secretários do Barão de Penedo, Ministro dos Negócios Estrangeiros e amigo de infância do Imperador, trazia sempre algum disse-me-disse dos corredores do Paço Imperial, que o pai lhe contava em suas missivas.

Aquilo causou um efeito estranho em Jerônimo; parecia que nada seria como antes; se imaginava no meio daquele torvelinho todo; no meio dos combates, de uniforme, comandando tropas; pareceu a notícia transformá-lo em alguém completamente diferente do que jamais fora. De repente, os jovens se puseram de um frenesi de correria e gritaria, se dirigindo ao posto da Guarnição da Província, para se alistarem; Ele se aprumou na sobrecasaca, mas de repente, lembrou-se...

Teria de falar com o pai.

Não esperou; tomou o trem até Mogi das Cruzes e de lá uma caleça até Jacareí, onde tentava imaginar a reação do pai, e o que ele diria.

Não demorou muito para que soubesse.

- De jeito nenhum!! – Urrou o pai, enquanto esmurrava a mesa de jantar – Nenhum filho meu vai se esvair em sangue em terra estrangeira!!! E sua carreira? Seu curso? Vai largar tudo para correr atrás de bugre numa terra de bugres? Nem pensar! Proíbo-o terminantemente! E se insistires te deserdo! Assunto encerrado!
- Mas pai, é um dever cívico, servir a Pátria...
-Dever cívico uma droga que é!!! Seu dever é com o seu pai! Me obedecer, sem questionar! E, Jerônimo, aprenda uma coisa: Pátria, de verdade, é isso! – disse, apontando para a casa – É a nossa casa, o lugar onde vivemos!!! E não se fala mais nisso!!! Dormes aqui hoje, mas amanhã de manhã voltas pra São Paulo e de volta aos estudos!

O pai virou-se num átimo e, sem dizer palavra, saiu sem olhar para trás.

Só então Jerônimo divisou uma figura feminina, que vinha ao lado de sua mãe; tinha o rosto levemente arredondado, olhos expressivos e cabelos castanhos arrumados em um coque alto; usava um vestido que realçava ombros delicados e elegantes; o sorriso particularmente o encantou; segurava na mão direita um bastidor com um bordado por começar, o braço esquerdo no ombro de D. Lidia; aquela visão ajudou um pouco a desanuviar a raiva depois do encontro com o pai.


- Meu filho, deixe eu apresentar a Luiza, filha do Comendador Andrade, de Vassouras; a família está passando uns dias como hóspede do Barão de Santa Branca; temos um jantar em casa dele hoje; tomei a liberdade de dizer que irias; fiz mal?
- Não, minha mãe, não fez; irei com todos com prazer, só espero que o meu pai esteja melhor mais tarde; a senhora deve ter ouvido tudo. De qualquer forma, muito prazer, Luíza, encantado em conhecê-la. 
- O prazer é todo meu , Jerônimo. Sua mãe já havia começado a me falar de suas muitas qualidades; vejo que ela lhe fez plena justiça

Jerônimo ficou prestando atenção aos olhos dela, na maneira de expressar-se, procurando disfarçar o deslumbramento, mas o rubor do rosto o traíra. A mãe viu, ainda assim, a face ainda contrafeita do filho e procurou aliviar as coisas
- Meu filho, não entenda mal seu pai; ele apenas quer o bem de todos; apenas tenta te proteger de algo que, para ele, pode ser perigoso demais;
- Eu sei de mim, minha mãe, e sei do que sou capaz; é como se eu fugisse do meu dever.
- Ouça seu pai, meu filho, ele sabe o que é melhor –a mãe respondeu num tom manso, mas firme que ele sabia que era o sinal de que ela não prolongaria mais a conversa – vamos tomar um pouco a fresca da tarde, antes de nos prepararmos para o jantar.

Caminharam pela Praça da Matriz, conversando amenidades. Jeronimo encantou-se ainda mais com a voz de Luíza, suave , mas com o toque de firmeza que ele via na mãe; ela comentava das conversas que tinha com a família do Comendador Teixeira Leite, um dos homens mais ricos da região e do pais, e especialmente falou da filha deste, Ana Eufrásia, uma jovem que tinha um intelecto e uma cultura fora do comum, que deixava os pais orgulhosos, mas a mãe de Luíza dizia, pelas costas, “que ela devia esconder um pouco tais talentos, pois os homens não apreciam mulheres que sabem mais do que eles”; ela discordava, mas, não querendo desafiar a mãe, mantinha um silêncio rebelde,
- Com o que então queres ir à guerra; o que esperas encontrar no meio do campo de batalha, senhor causídico? – Perguntou com certa ironia.
- Quero ter a consciência tranquila de que cumpri meu dever cívico, apenas isso, não sei como dizer, mas isso me transformou; é como um caminho sem volta.
- O rataplã dos tambores o hipnotizou como o flautista de Hamelin, então; vai segui-lo até o fim do mundo se preciso for.
- Sei que não vai entender, mas é como se fosse, para mim, uma missão que tenho de cumprir;
- Que seja então – disse ela em tom sério, mas ainda assim suave – vou dar uma coisa a ti, para que te protejas na batalha.
Ela tirou do vestido um pequeno broche, de moldura prateada, onde uma imagem do Menino Jesus de Praga se destacava. Ela, então, prendeu-o na lapela direita dele, para depois segurar-lhe as duas mãos num gesto terno.


- Minha avó me deu esse broche quando nasci; ela disse que quem o usa tem a proteção do Divino Infante em todas as adversidades.
- E tu, como farás sem ele?
- Tenho minha fé; dei-te porque sei que precisarás; não sei por quê, mas sinto que essa guerra te fará uma transformação muito grande. Que o Menino Jesus te proteja e te guarde. Sei que não te conformarás com a decisão de teu pai, que acharás um jeito de fazer a tua vontade. Vamos voltar, que já tarda para nos arrumarmos para o jantar em casa do Barão.

(Continua...)





Créditos das ilustrações - Blog e Livro "Jacareí Tempo e Memória" de Ludmila Saharov

sábado, 11 de abril de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - CAPITÃO CASTANHO


Ele não tinha medo de nada.

Era popular na tropa e nada ordenava que ele mesmo não pudesse fazer; de piquetes de esclarecimento até cargas de emboscada, era ele mesmo quem comandava, ou mandava alguém de confiança, mas sempre gostava de acompanhar; uns diziam que se atirava pra morte; outros que ele tinha enterrado o coração numa arca a vinte palmos debaixo da terra, por isso não podia morrer; outros mais ainda arriscavam a dizer que a bala que iria matá-lo não tinha nem sequer sido fundida; faziam o sinal da cruz pelas costas dele quando passava;

Viam-no sempre em silêncios meditativos, observando o campo, ou mesmo nas cavalgadas em que, tal qual Napoleão, reconhecesse o campo de batalha antes da refrega; hábil no sabre, era mortal na carga e não foram poucos os que conheceram o fim no seu aço afiado, de talho certeiro e mortal; não usava suas pistolas nos poméis ou coldres de sela, mas num coldre que deixava-as debaixo de cada axila, o que fazia o ato de sacar e atirar mais fácil; parecia não ter sono; uns diziam que comia e dormia na sela, que não teria medo nem se o próprio diabo aparecesse na frente dele.

O único que não tinha esse temor era Tibúrcio, o cabo de armas que o acompanhava; estava sempre a postos, no piquete ou mesmo em carga; tinha a mesma coragem, mas gestos mais medidos, olhos mais sombrios; quando perguntado sobre o porquê do capitão ser daquele jeito, dava de ombros e dizia: “cada qual com sua sina”.



Outro mistério que o acompanhava era a luva branca que usava pendurada no cinturão, toda vez que cavalgava; era uma luva pequena, enegrecida na palma e nas pontas dos dedos; tinha-a como talismã ou objeto de presságio; jamais saía para o combate sem ela; era um luva pequena , que jamais caberia nas mãos dele; muitos intuíam a razão dele carregar aquele talismã, e porque ele jamais falava nada do que o levara à frente de batalha...

PATY DE ALFERES, PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO,  JUNHO DE 1860

O tenente Maurício Castanho era a felicidade em pessoa.

Tudo estava arrumado para o casamento, que prometia ser o acontecimento da cidade; as duas famílias, amigas há muito, se compraziam da boda, pois os dois eram ligados desde crianças e todos já falavam da felicidade que sempre os acompanhou; a carreira de Mauricio seguia a passos largos e já se considerava um posto de estado-maior na corte, talvez com o próprio Marechal Polidoro, comandante do exército imperial; o pai, oficial da Guarda Nacional, mexera amizades e contatos para que ele estivesse muito perto de alcançar esse objetivo.



Impaciente em seu uniforme de gala, ele aguardava Amália, ansioso pelo momento que sonhou por toda a vida; era todo felicidade, enquanto andava de um lado para o outro, na impaciência de noivo; os amigos e colegas de farda o aquietavam falando da tradição de atraso das noivas; ele esperava, esperava e esperava...o céu, antes claro, começava a ribombar; raios e trovões pareciam fazê-lo tremer; os convidados começavam a se preocupar com o tempo; já se faziam dias que as tempestades de raios cortavam a serra, deixando capatazes, empregados e escravos em alerta; duas semanas antes uma tempestade assim quase destruíra o sitio do major Emiliano, grande amigo do pai de Mauricio.

A espera começou a preocupar os pais de Amália; ela preferira ficar apenas com Engrácia, filha de sua ama-de-leite e da mesma idade, para preparar-se e vestir o vestido de noiva; viria na carruagem do tio Arnaldo, que já tinha sido ajaezada e engalanada para a ocasião; Januário, capataz e homem de confiança do tio da noiva, tomou o caminho da fazenda Água Santa, para ver o que acontecia; no meio do caminho, avistou o horrendo espetáculo da carruagem ainda queimando, atingida em cheio por um raio; vasculhou ao redor pra ver se achava alguém; quem primeiro viu foi Engrácia, caída num ângulo estranho, os olhos vidrados no estupor da morte; alguns passos adiante, encontrou o corpo de Amália; o vestido branco estava esfarrapado, com partes enegrecidas e chamuscadas; o céu ainda relampejava quando Maurício chegou, cavalgando igualmente; quis dizer palavra, mas palavra alguma vinha; apenas a boca aberta no esgar do terror, do desespero do vislumbrar da morte; correu ao corpo da noiva, segurou os cabelos, beijou-os, tocou sua mão, ainda calçando a luva branca, enegrecida pelos chamuscos na ponta dos dedos e na palma das mãos; tirou-a e desnudou a mão ferida, segurando-a e beijando-a antes que a vista ficasse borrada e ele desmaiasse...

ITAPIRU, 1865

Não era mais ação de piquetes nem de escaramuças; agora, o grosso da cavalaria e da artilharia inimigas era despejado na posição deles e teriam que aguentar até que o reforço chegasse; o único jeito era atacar antes que o inimigo estivesse pronto; chamou os oficiais de esquadrão, alguns jovens tenentes que não haviam sido batizados a fogo e veteranos endurecidos; Tibúrcio já havia aprontado as armas, o sabre e os coldres sobre a mesa onde ele reunira os oficiais; junto dele, um jovem soldado que se juntara às pressas ao regimento; se reputava um bom atirador, embora ainda não se acostumasse com as manhas  dos animais; chamavam-no “pé-de-poeira”, por causa de seu passado como infante; o mais endurecido de todos era o sargento Alvarino, veterano do levante farroupilha, matreiro no combate.


Como de rigor, ele mandara patrulhas para sondar intenções, mas não conseguia saber muito de um inimigo esquivo; já pensava em levantar acampamento quando uma das patrulhas reportou um grosso volume de tropa, cavalaria e infantaria; subindo a ravina; no contar do piquete, eram dois para cada um; tinha de manter a posição a qualquer custo; pensou e então teve uma idéia; selecionou o tenente Mourão e  o Sargento Alvarino para ficar com dois dos esquadrões desmontados, Spencers carregadas e prontas pra uso; seguiria com as tropas montadas para cercar o resto da tropa inimiga, os pegando de surpresa; depois de dar as ordens, entrou na barraca e pendurou a luva branca no cinturão.

Os paraguaios viram a coluna desarmada no alto da colina e riram entre si; seria mais uma maçada, os brasileiros pegos desprevenidos; seguiram adiante, a cavalaria tomando a dianteira, a infantaria atrás; assim que chegaram no alto, porém, receberam toda a fuzilaria das armas da tropa do tenente Mourão; o fogo derrubou na primeira carga cavalos e cavaleiros, os de trás tentando romper o cerco; a infantaria inda não os alcançara, deixando-os sem apoio; ao tentarem contornar a frente da coluna, foram surpreendidos por outra torrente de fogo, desta vez da tropa do sargento Alvarino; a primeira carga foi detida, mas ainda mais duas se fizeram e se esbaterem no muro de fogo dos cavalarianos brasileiros desmontados. 

A infantaria, finalmente alcançando os cavalarianos, foi atropelada pelos companheiros montados em fuga; fuzis prontos, não tiveram tempo de formar e atirar; o capitão Castanho, com o resto da tropa montada, cortou a infantaria ao meio, os homens lanceando, cortando e atirando sem piedade; tomada de susto, a infantaria começa a se retirar, mas tem a fuga cortada pela outra coluna, que tinha ficado na reserva até receber ordem de atacar; sem tempo de formar quadrados defensivos, simplesmente foi castigada até quase a exaustão;  Castanho, já esgotada a carga de seus revólveres, usava o sabre sem perdão, atingindo torsos , cabeças e braços sem medo; de repente, um dos infantes atira quase sem mirar, mas a bala ainda tem força para atingir Castanho no pescoço; fazendo-o cair da montaria; seus homens, vendo-o cair, arremetem com fúria insana, destroçando o que restava da tropa inimiga, fazendo poucos prisioneiros...

O corpo do capitão foi recuperado horas depois, quando os feridos foram retirados e se juntavam os mortos; os do inimigo seriam queimados e jogados em valas comuns; os dos brasileiros receberiam , na medida do possível, sepulturas condignas; os oficiais, contudo, ordenaram aos homens que não queimassem os inimigos,, apenas os enterrassem nas valas; ao encontrarem o corpo de Castanho, porém notaram que ele parecia sorrir, sereno no meio daquele massacre; “pé de poeira”, tendo sobrevivido, estava com um prisioneiro paraguaio ao lado, que ajoelhado, jurava por “La Virgen de La Caridad”, que quando o viu, “o espírito dele se levantara e seguiu uma jovem de vestido branco que esvoaçava”. O corpo foi levado pra ser sepultado, com todas as honras; a história foi logo esquecida, menos para o soldado que, agora, tinha guardado a luva branca no seu uniforme...


Imagens: Google Images

sábado, 4 de abril de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - RIFLERO(1)



Augustin Ybarra, desde criança, tinha o olho apurado.

Ele sempre sabia onde poderia estar um animal ou mesmo sentia os movimentos que o denunciassem; tinha agudez não só durante o dia, pois mesmo à noite podia divisar movimentos combinando seus reflexos com sua audição; daí a ter a pontaria aguçada, o caminho foi bem curto.


Seu pai, Raul, o ensinara a atirar antes de completar doze anos; ensinou os truques do caçador, da emboscada ao tiro certeiro; eram raros os animais que escapavam de sua mira precisa; costumava passar dias caçando dentre as plantações de mate do pai, sempre voltando com algo abatido, que era prazerosamente preparado por sua mãe, Filomena; os irmãos o tinham como ídolo; Juan, o mais velho, vinha sempre quando as atividades em Assunção assim o permitiam; Mario, envolvido nos estudos preparatórios, ainda vivia na fazenda, mas logo iria para Buenos Aires cursar medicina; Julian tinha aulas com Mr. Simpson, tutor inglês contratado pelo pai, que o preparava para os estudos do Liceu; mas era Diego, mais jovem, quem nutria pelo irmão verdadeira adoração; Augustin nutria outra ambição: queria seguir a carreira militar, como o avô, que lutara pela independência e fora comandante militar durante a presidência de Gaspar Francia, primeiro presidente do Paraguai.
Os negócios faziam sempre o pai se ausentar por algum tempo, entre Assunção e Buenos Aires; havia dificuldades a resolver, desde as taxas e passagem pelo Prata até os portos argentinos e a proteção dos comboios e embarcações que seguiam pelos rios, especialmente ao passar pela província de Mato Grosso, no Brasil, onde sempre havia risco de apresamento por funcionários alfandegários corruptos; mas os negócios vinham prosperando mesmo assim, embora já existisse um clima de tensão desde que o filho do presidente Carlos Antônio Lopez, Francisco Solano Lopez, endureceu o tom com os vizinhos platinos; seus discursos eram assestados especialmente contra brasileiros e argentinos, culpados, segundo ele , de levarem o país à quase condição de penúria. Raul se preocupava demais com esse tom usado pelo presidente pois, se os países vizinhos resolvessem, podiam facilmente cortar o acesso do país ao mar, aí sim estrangulando a economia.

Augustin não se incomodava com os rumores; continuava seus estudos para a escola de formação de oficiais em Assunção, e continuava suas expedições de caça nas horas vagas; mesmo assim, sentia que algo se aproximava no horizonte; seus instintos, como a prevení-lo, avisavam de algo iminente.

A notícia do estado de guerra entre o seu país e os vizinhos Uruguai, Argentina e Brasil alcançou a família Ybarra no almoço; Raul, recém-chegado da viagem, foi quem trouxe as notícias; o governador da província de Mato Grosso, no Brasil, teve o seu navio apresado e o próprio governador fora aprisionado; exigências de reparação foram emitidas pelos governos brasileiro, argentino e uruguaio, para que o governo paraguaio libertasse o governador e restituísse a embarcação apresada; o governo não só ignorou as exigências como incorporou o navio à marinha paraguaia; mesmo antes das tensões, Solano Lopez já vinha comprando armas e contratando conselheiros para treinar o exército, já aumentado em tamanho com a mobilização declarada meses antes. Tudo o que Raul mais temia estava acontecendo; o comércio seria muito prejudicado, isso se já não se colocasse à falência; o filho mais velho, em Assunção, já tinha se alistado e comandava um regimento de cavalaria.



Foi o suficiente para que Augustin se decidisse; arrumou sua bagagem e se dirigiu para o alistamento em Assunção; a mãe, incapaz de demovê-lo, apenas pôde acompanhar a partida dele, com o choro do irmão mais novo, enquanto ele se dirigia para a capital.

Assunção, a princípio, foi uma surpresa total; acostumado ao silêncio das noites da fazenda, a cidade era um burburinho sem fim; tropas marchando de um lado a outro, oficiais gritando ordens, carroções de suprimentos atravessando as ruas; entrou no posto de recrutamento e se apresentou a um sargento rotundo chamado Morales, os botões quase a estourar do uniforme.


- Então quer entrar no exército, rapaz? - Rosnou o sargento, olhando Augustin de alto a baixo – vamos ver se tem bagos pra isso; entre naquela fila e assine seu nome na lista com o cabo Gonzalez; rápido, ande logo! A guerra não vai esperar por você, garoto da fazenda; vá logo!!!

Logo depois de assinar o termo de alistamento, Augustin e mais outros foram encaminhados para treinamento nos arredores de Assunção; os primeiros dias foram difíceis, a comida rustica, bem diferente da fazenda, o burburinho dos outros recrutas e o barulho do rancho o incomodavam; foi, aos poucos, se acostumando com aquilo; o que mais o entediava eram os constantes treinamentos de marcha e ordem-unida; queria logo entrar em ação, enfrentar o inimigo cara a cara; mas aguentou firme, esperando o tempo de ir à linha de frente.



Depois de quatro meses já dominava as artes de marcha e tiro de fuzil, com a pontaria já apurada ainda mais precisa; já ansiava o dia e que sua tropa ia ser mandada para a frente de batalha; já tinha ouvido falar que iriam ser mandados pra fronteira com o Brasil, onde o general Estigarribia já tinha capturado a cidade brasileira de Uruguaiana.

Ao entrar no refeitório, notou uma figura que destoava da massa de túnicas vermelhas que se aglomerava no rancho; era um homem alto, de cabeleira comprida ruivacenta e um vasto bigode; fumava calmamente um cachimbo feito de sabugo de milho, e observava com frieza a massa de recrutas que se acotovelava para comer; do mesmo jeito calmo, saiu depois de bater o cachimbo e colocá-lo no bolso do casaco curto. Minutos depois, o sargento Aragon entrou no salão, olhando rapidamente a soldadesca.

- Soldados Ybarra, Oviedo, Echevarria e Gazcon, o comandante os chama; rápido!

Os quatro soldados foram conduzidos pelo sargento até o posto do comandante, na parte leste do quartel; aguardaram alguns minutos e logo depois o sargento levou-os adentro, onde encontraram o coronel Barrios em seu dólmã azul, e , ao lado dele, o mesmo homem que Augustin vira no rancho; cabelereira longa e ruiva, bigode vasto e olhar frio; que percorreu os quatro soldados de alto a baixo; depois de trocar algumas palavras com o coronel, numa língua que Augustin não entendia, fez um movimento de concordância com a cabeça e o coronel passou as instruções aos soldados;

- Vocês foram escolhidos para integrar o Corpo de Rifleros, um regimento especial de nosso exército, que reúne os melhores atiradores das fileiras para servirem de maneira especial ao nosso país; este é o Major Sorrell, do exército confederado americano(2), que será seu comandante a partir de hoje; sucesso em sua missão, bravos soldados da Pátria!

Ainda sem saber muito sobre o que seria essa nova tropa, os quatro seguiram o major até um carroção onde já estavam outros soldados; o major montou a cavalo e sinalizou para que o cocheiro se pusesse em marcha; depois de umas duas horas de jornada, chegaram a um acampamento diferente, onde as tendas eram distribuídas com bandeiras coloridas: branca, verde, amarela e vermelha; ouviu o barulho de tiros vindo do fundo do acampamento e soldados vestidos não com as túnicas vermelhas do exército, mas com um uniforme cor de terra, parecido com o do homem ruivo, com faixas na manga de cores iguais às bandeiras das tendas; foram conduzidos até o centro do campo, onde outro homem, desta vez de cabelos louros encaracolados e divisas de sargento, falou a eles.


- Bem-vindos ao Corpo de Rifleros, a unidade de atiradores do exército! Aqui vocês vão se tornar soldados de verdade, saber o que é a verdadeira guerra; a partir de agora, esqueçam o que aprenderam; vamos fazer vocês conhecerem um tipo diferente de guerra, onde um tiro pode ser a diferença entre a vitória ou a derrota; agora, tirem essas túnicas!

Augustin e os outros tiraram as túnicas vermelhas e as amontoaram em ordem ao lado do sargento, que, assim que o último dos quatorze o fez, ateou fogo nelas, sob o olhar espantado dos demais; minutos depois, elas nada mais eram do que farrapos carbonizados; o sargento então os conduziu para a tenda de bandeira branca, onde um cabo indicou onde deveriam dormir; passou a cada um uma túnica curta, da mesma cor de terra que tinham visto, com uma faixa branca amarrada na manga.

- A cor branca é a cor do iniciante; se vocês conseguirem completar o treinamento, usarão a vermelha; boa sorte e boa caçada – disse o cabo, no mesmo tom sem expressão.

No dia seguinte, o toque do clarim reuniu todos no centro do acampamento; Augustin contou cerca de trezentos homens, divididos em grupos de dez, cada um sob o comando de um sargento, de braçadeira vermelha na manga; entraram em forma e, minutos depois, o homem de cabeleira ruiva saiu de dentro da tenda central, fumando o seu cachimbo de sabugo; olhou para os sargentos e depois para os recrutas, começando então a falar; seu sotaque estrangeiro era carregado, mas sabia bem da língua para não cometer erros

- Vocês foram escolhidos para um papel importante na luta da Pátria! Suas vidas serão, a partir deste momento, remodeladas para atingir o inimigo de forma mortal e precisa! Vocês já ouviram que um tiro pode ser a diferença entre a vitória e a derrota nessa guerra! Agora, vamos fazer vocês aprenderem como fazer para que seja sempre vitória! Muitos aqui irão desistir, mas os que conseguirem chegar até o fim serão uma força que o inimigo vai pensar duas vezes antes de enfrentar! Sua vida nova começa agora! Sargentos! Assumam seus postos!

Os sargentos gritaram ordens e reuniram os homens. O treinamento começara...

Cada etapa fora vencida com determinação e vontade; vindo do ambiente rural, Augustin passou fácil nas etapas de ocultação, camuflagem, rastreamento e emboscada; sua pontaria, já bem adestrada, se mostrou mortal; aprendeu a julgar distâncias com precisão, usando a ponta dos dedos; mesmo nos mais longas distâncias sua perícia era mortal; de um morro alto, o ruivo major Sorrell observava os progressos dos recrutas; Augustin sempre o via, fumando o inseparável cachimbo de sabugo; da faixa branca passou rapidamente à verde; passou então à amarela e, nesse dia, o major reuniu os que já estavam nessa etapa e apresentou o que ele chamava de “a ferramenta de guerra”; era um rifle diferente, com alça de mira como um anel com regulagem, o cano sobreposto por um longo tubo, completamente alinhado.




- Este será seu companheiro a partir de agora; aprendam a dominá-lo e ele será o instrumento da vitória; decorem cada parte dele como se fosse parte de vocês e serão temidos e respeitados – disse num tom respeitoso, ao entregar o Whitworth 53, o rifle de precisão que fizera a sua fama na Guerra Civil Americana(3); efetivo até quase um quilômetro, era o terror dos inimigos; muitos oficiais caíram sem nem saber o que os atingira; Augustin sopesou o seu e viu que era leve e fácil de empunhar e apontar; pra surpresa dele, o longo tubo sobre o cano revelou ser um telescópio, com um campo marcado na lente para enquadrar o alvo. Sentiu que o rifle era como uma luva nas mãos dele, o que foi comprovado no dia seguinte, quando conseguiu acertar um alvo a mais de 800 metros, guiando-se apenas pelo leve brilho dos botões do uniforme usado como alvo. Ao ver isso, o major Sorrell desceu de onde estava e, pessoalmente, retirou a faixa amarela e amarrou a faixa vermelha na manga do uniforme de Augustin

- Orgulhe-se, você mereceu cada vitória aqui; agora, outras coisas serão aprendidas

O treinamento de campo foi substituído por outro; desta vez, era a hora de saber as diferenças entre os oficiais brasileiros, argentinos e uruguaios, seus graus e galões, as maneiras que os mesmos se portavam, para reconhecê-los bem no campo de batalha; depois disso, os movimentos de tropa do inimigo a organização, e como faziam ataque e defesa; soube que cada grupo de rifleros seria distribuído entre cada regimento, sempre havendo pelos menos dois atiradores em cada tropa de infantaria; avançariam como ponta de lança para, abatendo os oficiais, desarticular o inimigo;

Quando o treinamento terminou, apenas Augustin havia completado todo o treinamento; seus outros três colegas de tropa, um morrera de uma picada de cobra, outro simplesmente desertara e não fora mais visto e o último simplesmente desistira e voltara à unidade de onde tinha vindo; no último dia, empacotou suas coisas, o rifle e seguiu para onde fora destacado, a guarnição da Fortaleza de Humaitá; antes de deixar o acampamento, porém, o major Sorrell o encontrou, entregando um pequeno embrulho, Augustin o abriu e tirou dele um outro sistema de mira, onde um poste regulável terminava em um anel que tinha as mesmas medições. O ruivo o encarou nos olhos, como se o olhar aconselhasse; por fim se despediu.

- Aceite isso como prêmio por ter se destacado; uma pequena lembrança. É um sistema de mira Vernier, muito preciso, vai ajudar muito. Agora vá e lute, sem olhar pra trás.

Augustin saudou-o numa continência solene, respondida pelo major com igual solenidade; os dois se encararam ainda uma vez e trocaram algumas palavras antes do jovem atravessar o portão e ir de encontro à guerra...

Ele sabia que seria diferente, mas não imaginava que seria tão cruel.

A missão dele era neutralizar qualquer ameaça de artilharia que pudesse chegar ao alcance da fortaleza; gostava de operar sozinho, mas de vez em quando dois outros rifleros, Alvar e Olmedo, o acompanhavam; sem ser percebidos, chegavam a uma distância onde podiam atirar sem que o inimigo pudesse saber a direção dos tiros; visavam especialmente oficiais e apontadores, facilmente identificados pelos galões e dragonas, além da maneira como eram tratados pelos outros recrutas; muitas vezes ousavam a ponto de, para registrar os acertos, se esgueirar e pegar botões do uniforme, para mostrar ao comandante da companhia; os demais soldados os invejavam, por terem muito mais independência que o resto; mas ainda assim eram evitados, e mais de uma vez se ouviu a palavra “Assassinos” falada às suas costas; respondiam somente ao comandante da guarnição, que sempre exigia relatórios das incursões.

Num dia , acordou com um barulho de explosões , que vinham do lado do rio, levantou-se e pôde ver os navios com a bandeira imperial brasileira começando a bombardear a fortaleza; mas, por imprecisão dos artilheiros navais ou porque os barcos não queriam se arriscar a chegar ao alcance das baterias de Humaitá, os disparam passavam longe, caindo muito atrás; nem mesmo as trincheiras de defesa na retaguarda foram atingidas; ele correu para seu posto, na trincheira avançada situada no esteiro perto da fortaleza de Curupaiti, e começou a explorar a linha adiante; não precisou de muito tempo para ver as linhas de soldados que avançavam, os oficiais organizando-as e as colocando em posição de ataque; os que vinham não sabiam das peças de artilharia posicionadas em plataformas sobre o esteiro e nem dos atiradores em trincheiras rebaixadas, fora da linha de visão dos que avançavam; as silhuetas se tornavam mais nítidas, mais e mais próximas; os rifleros, espalhados por entre as unidades, tinham ordem de abater os oficiais assim que avistados.



Augustin ergueu o rifle, divisando pelo telescópio o oficial de dólmã azul e dragonas douradas, que conduzia a coluna em perfeita ordem; apertou o primeiro gatilho, armando o gatilho de precisão, ativado na menor pressão do dedo; um leve toque e fez-se o disparo, derrubando e matando instantaneamente o oficial; 

foi o sinal para que o resto da tropa atirasse, numa fuzilaria que desfez a coluna em grupos desordenados; ele via a tentativa de se preencher os claros e manter o avanço, mas os oficiais abatidos abalavam o moral da tropa; mesmo assim, ele viu carga atrás de carga de infantaria se esbater na muralha de fogo das trincheiras na retaguarda da fortaleza; depois que se constatou que não podiam romper a linha de defesa, as tropas argentinas, brasileiras e uruguaias se retiraram, deixando o campo juncado de mortos e feridos; somente quando as tropas se retiraram e recolheram os feridos é que os soldados e oficiais deixaram as trincheiras e começaram a inspecionar o campo, despojando os mortos de roupas e pertences pessoais. Um dos oficiais reconheceu o corpo de um oficial argentino caído, chamando o comandante da fortaleza; o oficial era Domingos Fidel Sarmiento, filho mais jovem do presidente Domingo Faustino Sarmiento, um dos mais importantes políticos da Argentina, segunda autoridade do país, depois de Bartolomé Mitre, então presidente; o comandante ordenou que o corpo fosse removido e levado em bandeira branca até a linha argentina, para que fosse sepultado. Os outros foram enterrados em valas comuns, apenas com um marco indicativo do sepultamento.



Augustin ainda fez algumas expedições de exploração, para localizar possíveis piquetes de tropas aliadas; depois da derrota de Curupaiti, apenas o exército brasileiro fazia operações na área; os argentinos diminuíram sua participação e a dos uruguaios apenas ficou simbólica, com um batalhão, o Florida, cujo comandante, o capitão Palleja, tinha sido mortalmente ferido. Os brasileiros fizeram um anel de trincheiras avançadas circundando a defesa paraguaia, com piquetes impedindo a passagem de qualquer tipo de suprimento; aos rifleros cabia fustigar esses piquetes, abatendo oficiais e sargentos; Ele sabia marcar os alcances de seu rifle com sinais nas árvores, de onde podia se posicionar para atirar; numa tarde , com o sol às costas; conseguiu divisar um oficial de uniforme mais engalanado; devia ser alguém recém-chegado, pois os oficiais brasileiros , sabedores da precisão mortal dos atiradores, tiravam as dragonas e sinais que denotavam seu posto e recebiam apenas saudações verbais dos soldados, para evitar se tornarem alvos; visou o peito do homem, elevando a mira por causa do vento forte; o tiro atingiu-o abaixo do pescoço; não precisou se certificar; sabia que o disparo o matara instantaneamente. Desceu devagar, evitando ser localizado, e se deslocava para o próximo local de espreita, quando sentiu como se fosse atingido por um martelo; caiu de costas, os olhos fixando o céu; pensou nos campos de mate do pai, na sua mãe, e, depois, nas últimas palavras do major Sorrell antes de se despedirem: “Você é muito bom, mas tome cuidado que vai aparecer um melhor, e nem sempre estará do mesmo lado que você”; agora ele entendia, e, ao saber-se batido, cerrou os olhos...

Na fazenda Ybarra, Filomena, a mãe , sentiu um vento frio vindo não se sabia de onde; tomou o terço, rezou em silêncio e tomou o tecido que deixara dobrado sobre a cama; o filho Juan a esperava e os outros já estavam em uma carruagem que os levaria a Assunção; a fazenda não era um lugar seguro para mais ninguém, pois não se sabia se os soldados conseguiriam defendê-la...

O soldado rastejou com cautela, indo até onde achava que o corpo poderia estar; encontrou-o mais adiante, próximo a uma árvore alta que tinha um corte profundo no tronco: estava deitado de costas, o rifle sobre ele, o madeirame destroçado pela bala que atravessara a arma e o atingira no esterno; o cano estava esmagado pelo impacto, inutilizando a arma; o soldado revirou os bolsos e, ao tirar o bornal do morto, viu o saco de estopa cheio de botões de uniforme, alguns ele reconhecendo de unidades em que conhecera alguns homens; estava ali o que tinha tirado a vida de muitos de seus amigos...tirou o rifle, colocou-o no ombro e ia deixar o corpo ali, mas de repente, lembrou-se que não seria correto deixá-lo sem enterrar; usando a coronha do rifle do morto, cavou uma cova rasa, quebrou a madeira em duas partes, improvisou uma cruz amarada com os cordões dos sapatos e, depois de enterrá-lo, marcou o túmulo com ela; fez o sinal-da-cruz, rezou brevemente e se afastou em direção às trincheiras avançadas brasileiras; levou como recordação, o telescópio que retirara do rifle do falecido...

NOTAS

(1) Os Rifleros eram corpos de infantaria especialmente treinados e equipados para abater oficiais e observadores/apontadores de artilharia inimigos, desarticulando os movimentos da tropa; geralmente formados em grupos de dez ou doze; iam como ponta de lança/escaramuçadores dos regimentos, em formação mais livre que as cerradas colunas de infantaria;

(2) Não há realmente notícias confirmadas que mercenários confederados tenham sido contratados para treinar unidades do exército paraguaio, mas as táticas que o exército empregava e as táticas demonstradas pelos rifleros e o seu equipamento suscitam suspeitas de treinamento por “sharpshooters” (atiradores de elite) confederados

(3) O rifle Whitworth 53 era a arma de escolha dos rifleros e foi comprada em grande quantidade para equipá-los; com alcance prático de mais de 800 metros, disparava uma bala de seção hexagonal que tinha enorme grau de precisão; alguns generais Unionistas na Guerra Civil Americana e oficiais brasileiros e aliados na Guerra do Paraguai foram vítimas de atiradores equipados com esse rifle, o que fez com que Caxias, comandante do exército da Tríplice Aliança, baixasse ordens proibindo o uso de galões e insígnias conspícuas nas trincheiras avançadas, além de proibir que os soldados batessem continência, saudando os oficiais verbalmente; também foi proibido fumar à noite, pois a chama de um fósforo ou a brasa de um cigarro ou de um cachimbo fazia do soldado um alvo;