sábado, 28 de fevereiro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VAZIO

Ela chegou do mesmo jeito de sempre.
Com os sapatos na ponta dos dedos, girou a chave na porta ao mesmo tempo que deixava cair o guarda-chuva no balde de tela na entrada do apartamento; deixou a bolsa na poltrona perto da porta, os sapatos no lado da mesinha do telefone e sentou-se no sofá, esticando as pernas. Respirou fundo...
Só então, se deu conta de uma coisa. Ele não estava lá.
Tinha acabado de chegar do funeral dele; os poucos e fiéis amigos carregaram o caixão para a sepultura simples, um jazigo comprado há muito, onde repousavam a mulher e a mãe, a primeira ocupante; o pai, na preferência de ser cremado, preferiu que suas cinzas fossem sepultadas com a companheira; caía uma chuva fina, que ele apreciava de ficar horas olhando pela janela, notando cada passante apressado , mesmo da altura do 16º Andar; um dos amigos recitou uma elegia simples, depois de uma silenciosa meditação; o caixão foi colocado no lóculo e este, finalmente, lacrado;
Ela não chorou e nem choraria agora; lembrou do pai repetindo a frase de Oswaldo Cruz: “a morte é um fenômeno biológico tão natural e tão inevitável, que acho desnecessário e fútil frisá-la com cerimônias especiais”; mas uma última vontade do pai ela não cumpriu; ele, que desejava ser apenas amortalhado, foi sepultado com um terno sob medida, sapatos impecáveis e bem arrumados; “se ele tinha de ir ao encontro do Criador”, pensou ela, “deve ir bem vestido”. Permitiu-se um riso leve, antes de entrar no chuveiro...
Saiu do banho como se largasse um fardo; enxugou-se, vestiu um vestido leve e pôs-se a esquadrinhar o apartamento; precisaria arrumar muitas coisas, arquivar as anotações e cadernos do pai, ajeitar documentos, resolver pendências...
Documentos...
Lembrou-se do blazer largado no sofá; Lisandro, advogado do pai por anos, desde que saíra das barbas da faculdade, entregou a ela um envelope, onde, na letra rebuscada do pai, estava escrito apenas: “leia depois do meu enterro”; pegou o envelope do bolso, foi para o quarto e começou a ler...
“Cara Filha Eliza
         No momento em que corres os olhos sobre estas linhas, eu com certeza já devo estar morto e o Lisandro, com aquela cara solene de papa-defuntos (que ele não nos ouça) entregou o envelope pra você; não preciso te dizer coisas que já sabes; O próprio Lisandro vai se encarregar disso; o que tenho pra te falar é outra coisa...
         Tu, mais do que ninguém, sabes do que foi a paixão da minha vida; desde quando conversei pela primeira vez contigo sobre o assunto, depois de todas as tempestades da tua vida, vi que entendias e sabias do meu interesse mais do que a sua mãe – que Deus a tenha – e que igualmente sabias que aquilo era o móvel de algo mais que um simples interesse por história; para mim era o resgate de gente que, se pudesse ser ouvida, falaria de um tempo que conhecemos tão pouco; até quando conheci o Antônio Ribeira, em meu tempo de juventude, senti que era algo mais que me movia, como se um mentor oculto apenas me dissesse: “conte a história deles”; consegui juntar peças , mas nada consegui contar; assim, o que te peço é que destine a alguém que o possa fazer, para que tudo o que busquei nesse tempo todo em minha vida não morra junto comigo; não te obrigarei que o faças; podes simplesmente passar ao Lisandro; dei instruções a ele para que proceda tudo e acompanhe o desenrolar dos acontecimentos; esse pedaço da história é precioso demais pra ser esquecido, importante demais para permanecer no fundo de uma gaveta; te peço que não deixe que sejam esquecidos; lutei demais para emergir tudo isso, mas sempre encontrei portas fechadas, senões, recusas e desculpas esfarrapadas; sinceramente espero que consigas ter êxito onde eu não consegui...
Tente ser forte; sempre foste; me alimentei da tua força em segredo, quando em muitos momentos quase esmoreci; assim, eu confio em ti para que possas fazer com que essas histórias sejam, finalmente, contadas...
Do Teu Pai
Silvano Andeiro Thomaz”

Ela deixou a carta sobre a cama, respirou fundo e meditou; lembrava das constantes viagens do pai, sempre em busca de histórias sobre sua grande paixão, A Guerra do Paraguai; lembrava da mãe dar de ombros, a dizer: “sandices do teu pai” mas não protestava nem fazia caso; ainda estudante de arquitetura, lembrava que por vezes o pai mergulhava em silêncios longos, onde parecia se apartar do mundo e mesmo da consciência, guardado que estava em sua reclusão; seu local nessa hora era o pequeno espaço próximo ao janelão que dava pra rua, onde ele gostava, nos dias de chuva, ver os passantes apressados procurando se proteger; nesse local, arrumaram uma estante e uma cadeira preguiçosa que dava ao local um ar de Sancta Santorum; nem Ademilde, a fiel faxineira que servia a casa, mexia naquele local; era onde ele fazia seu templo, seu refúgio, seus segredos...
Ela ficou pensativa por um instante, releu a carta e deitou-se, remexendo as palavras do pai, como se quisesse descobrir algo mais; ela o vira escrever, algumas vezes à mão outras vezes na velha Olympia que, por mais que ele tivesse à disposição um laptop, presente dela, onde escrevia suas colunas para diferentes revistas e jornais, preferia fazer alguns escritos na velha Olympia, mas sempre tinha um destino para aqueles papéis que ela não conhecia;

Saiu do quarto e foi até a sala; parecia ter dobrado de tamanho, tal era a sensação de ausência do pai; tudo parecia estar mais longe; a mesa de jantar no lado esquerdo a estante de Louça Companha das Índias, orgulho da mãe, que gostava de colecionar peças; o relógio de carrilhão no lado oposto, a coleção de miniaturas de monumentos, a única coisa que ela se assumia apaixonada; o lustre de estilo Lalique, feito por uma amiga artesã vidreira, cuja luz esverdeava coloria a sala. Viu o recanto do pai, do jeito que ele havia deixado antes de ir para o hospital; só agora, confrontada com a imensidão do espaço, sentiu a falta dele; foi para o quarto, deitou-se novamente, e sem nem mesmo prévia, chorou copiosamente até que, como se drenasse toda a tristeza num único instante, dormiu.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!