sábado, 28 de novembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XIX

CHARLTON HOUSE, 1890

Aurélio parecia ter feito as pazes com sua vida.

O casamento com Agnes transcorria feliz, os filhos tinham crescido e seguido suas vidas; Anna estava noiva de um promissor oficial da Marinha Real e Aurélio, mesmo a contragosto do pai, seguiu carreira militar e estava por se graduar em Sandhurst; o terceiro filho, Matthew, já nascido em solo inglês, era quase saído da meninice; Aurélio ainda recebia com alguma regularidade cartas da irmã, que cuidava do patrimônio que coube a ela no espólio do pai; não se casara novamente, pois ela dizia em suas cartas que “se cansara de esperar por promessas que não se cumpririam; os jogos amorosos agora eram um enfado”; ficou a pensar na irmã de outros tempos, ansiando por aventuras românticas; os tempos mudavam e as pessoas também...

Seus pensamentos foram interrompidos pelo som de passos vindos do corredor; a criada trazia uma bandeja com chá e madeleines recém-assados, cujo aroma se espalhou pela sala; sem dizer palavra, deixou-a sobre a mesa e afastou-se. Ele se limitou a sentir o aroma dos doces, ainda relutando em comer; ouviu novamente o som de passos, desta vez mais leves e compassados.



- Que pensamentos são esses que tanto o perturbam, meu querido? -  Ela percebeu através da calma o olhar profundo e preocupado.
- Sabes que reneguei todas as coisas de meu passado na guerra, todas as dificuldades que passei; tentei com todas as forças manter isso longe da família; a opção do meu filho simplesmente me tirou o chão.
- Ele nada mais fez do que você mesmo quando decidiu se alistar, não lembra? O seu pai também não aprovava, mas assim mesmo fez o que fez e quase não consegue se despedir dele.

A observação da esposa o chamou à razão; ela sempre sabia o momento certo de chamá-lo ao bom senso, ao equilíbrio; essa soma de forças fazia com que tudo na vida deles, das finanças à relação com os filhos, fosse sempre assim, sem percalços.

Deu as mãos a ela e, por fim, provaram do chá e dos doces..





SPION KOP, Africa do Sul, 1900

O calor era insuportável.

Os nervos dos homens já tinham alcançado o limite; o entusiasmo inicial já os havia abandonado há tempo; acossados pelos tiros precisos dos rifles Mauser dos Boers e sob fogo constante de artilharia – os canhões inimigos não podiam ser localizados, pois já usavam a nova pólvora sem fumaça, que tornava inútil o treinamento dos observadores de artilharia, que se orientavam pela fumaça dos disparos – muitos se desesperavam, igualmente atormentados pela sede e pela fome; a ilusão de uma vitória fácil sobre os teimosos fazendeiros sul-africanos se desfez...



O capitão Aurelio Charlton – chamado pelos homens de “Captain Aurell”, pela dificuldade em pronunciar seu nome brasileiro – municiava sua pistola Mauser C96 enquanto usava um periscópio para sondar o horizonte; para surpresa dos soldados, o topo do monte era da mais dura rocha, impedindo que se cavasse uma trincheira profunda; o resultado foi que embora dominassem a colina, ficavam expostos tanto ao fogo de artilharia quanto aos tiros precisos dos rifles. O local ficou juncado de mortos e feridos e o cheiro já era pungente demais para suportar.



Foi então que ouviram os gritos.

Uma leva de centenas de Boers atacou a colina, avançando sem medo e com um aguerrimento que surpreendeu os britânicos; se seguiu uma luta sem quartel, onde o inimigo, mesmo sofrendo pesadas perdas, conseguiu empurrar os ingleses para um terreno onde não havia muita chance de defesa. Aurélio tentava organizar uma resistência, mas os homens, debilitados pela sede e pelo cansaço, estavam no fim de suas forças e os reforços falharam em levantar o cerco; enfim, vendo que nada mais podia fazer, o oficial comandante ordenou a retirada, deixando os mortos e os feridos que não podiam ser resgatados no topo da colina...



Carregado por dois soldados, o capitão Aurelio, ferido na coxa e no antebraço esquerdo, foi conduzido a uma ambulância, onde um sargento indiano, de baixa estatura e com um pequeno bigode, o ajudou a acomodar-se, enquanto um enfermeiro verificava seus ferimentos; com um misto de raiva e desapontamento, olhou ao redor e viu, do outro lado do rio Tugela, a colina que tantas vidas havia custado, fruto do desconhecimento e da incompetência de generais pomposos que não se importavam com os homens; insistiu em ficar para ver a situação dos soldados, mas o oficial médico disse que ele precisaria de mais cuidados no hospital de campanha, se quisesse sobreviver ; a ambulância preparava-se para partir quando ele se dirigiu ao indiano que o ajudara.
- Sargento, veja que esses homens recebam o melhor cuidado possível; lutaram com muita coragem e não merecem ser deixados de lado.
- Me assegurarei disso,senhor – disse o indiano.
- Muito bem, fico mais tranquilo em saber que posso contar com isso, sargento...
- Gandhi, capitão; Mohandas Gandhi, do Serviço Indiano de Ambulâncias.

Aurélio respondeu a continência e deu duas pancadas no madeirame, sinal para que a carroça seguisse em frente; teria muito a relatar aos seus superiores, depois que saísse do hospital...




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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XVIII


Eliza sorriu enquanto ele conferia o GPS.

A bucólica paisagem campestre inglesa era um alívio, depois do burburinho londrino; ele imaginara uma cidade fleumática, de tipos formais e silenciosos; espantou-se com a agitação, que ele achava tão tipicamente americana.

- Essa Londres é bem dos livros de mistério ou de peças de teatro, meu amor; depois dos Beatles e dos punks, ela jamais foi a mesma, mas mesmo assim é encantadora – disse ela, divertindo-se com o espanto dele.

Sorriram juntos, enquanto seguiam adiante.

As estradas rurais, mesmo com seu visual encantador, revelaram-se um desafio; mesmo ela , tendo residido algum tempo no país, jamais se aventurara fora de Londres sozinha, e, quando viajava, sempre era com alguém que conhecesse bem o caminho; por sorte, tinham descoberto no apartamento de Derek um guia das casas de campo da região, onde Charlton House aparecia como uma das mais antigas casas descritas; “vai ser mais fácil assim”, pensou ele.



Isso seria mais fácil dizer do que fazer.

Embora figurasse como uma das casas mais antigas daquela parte, havia pouca coisa sobre a localização, que , segundo o guia, dava apenas uma referência de uma colina próxima, densamente arborizada, que a fazia ficar oculta aos que vinham pela estrada.

Uma estrada vicinal de macadame, quase escondida pelas cercas-vivas que estavam nos lados da rodovia, revelou uma placa onde se via “CHARLTON HOUSE 2 miles”; a estradinha era emoldurada por pedras toscamente talhadas, que davam um aspecto antigo; rumaram por ela até que chegaram a um portão escuro, onde letras douradas formavam um monograma que, certamente, deveria ser o dos Charlton; Eliza desceu e se dirigiu até o portão, apertando a campainha para ver se era atendida; uma voz misturada com estática perguntou se eram visitantes, pedindo que voltassem em um hora, pois o horário de visita guiada começava por volta de duas da tarde; Eliza respondeu num tom firme, e, dentro de poucos minutos, o portão se abria, revelando, no alto da colina, a casa que os tinha intrigado tanto; Walter reparou na cerca branca a uns cem metros da casa, nos fundos, mas procurou prestar atenção no caminho até a entrada. Já os esperava uma mulher aparentemente de meia-idade, cabelos brancos arrumados num coque elegante e de olhos azuis expressivos.


- Bom dia, espero que sua viagem tenha sido agradável – disse a mulher em um tom formal, de uma cortesia que parecia camuflar sua verdadeira expressão – Sou Mavis Lockhart, governanta e curadora de Charlton House; no momento, o senhor Mark Charlton se encontra em Paris a negócios, mas se eu puder ajudar, podem falar comigo.
- Muito agradecidos , Sra. Lockhart.
- É Senhorita Lockhart, minha cara, eu sou filha única , e o trabalho de cuidar de meus pais não deu-me tempo para ter família.
- Perdoe-nos então , senhorita; estamos em viagem pela Inglaterra e aproveitamos para conhecer a casa, pois tem um pouco a ver com uma pesquisa que estou fazendo

Eliza, então, contou a Mavis toda a história desde o princípio, desde o testamento do pai até a circunstância que a levou até lá; a governanta a fitava com olhar inquisidor, como se cada parte da história acendesse uma luz em seus pensamentos; por fim, ela conduziu Eliza até uma sala próxima do vestíbulo, onde uma galeria de retratos de família dominava a decoração; no quadro maior, a família composta do marido, da esposa e dois filhos, uma menina, mais velha, aparentando ter quatorze ou quinze anos, a esposa, sentada numa cadeira de espaldar alto, e um menino, que deveria ter uns oito ou nove anos, abraçado à mãe; ela notou que o homem não assumia a pose formal geralmente encontrada nos retratos de família, mas trocava olhares cúmplices com a esposa e os filhos; outros retratos mostravam as mesmas crianças, mas desta vez não eram pinturas, mas daguerreótipos que mostravam cenas de viagem, de lazer e mesmo de um casamento de família.
- Aqui, um pouco da história da família, minha cara; a propósito, seu nome...
- Eliza Thomaz, sou arquiteta e tenho um escritório no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro;
- Interessante! Há algum tempo uma outra pessoa com este sobrenome esteve aqui, em busca de alguns documentos; a senhora por acaso sabia que, naquele retrato de família que viu, o marido de Lady Charlton era um brasileiro? Ela o conheceu quando o pai tinha negócios naquele país, há mais de cem anos.
- Essa pessoa seria por acaso um jornalista chamado Silvano Thomaz?
- Eu creio que sim; ele deixou aqui um cartão de visita que eu devo ter guardado; ele é seu parente?
- Ele era meu pai, senhorita; e eu estou aqui, como já expliquei, para concluir um trabalho dele. Ele faleceu recentemente e deixou esse trabalho inacabado.
- Eu sinto muito senhora, espero que esteja tudo bem.
- Não se preocupe, isso já ficou para trás; espero não incomodar mais que o necessário
- Não, não será incômodo, por favor, me acompanhe.

Walter e Eliza a seguiram, imaginando que histórias a casa poderia contar...

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XVII


CRUZANDO O ATLÂNTICO, 1877

Ele contemplava o mar como se a imensidão das águas fosse dar resposta às suas indagações.



Agnes e as crianças ainda dormiam na cabine; levantara mais cedo por não conseguir conciliar o sono com o tempo da viagem; mesmo sendo os dezesseis dias um tempo mais rápido do que se tivessem partido do Rio – vinte e oito dias era o tempo em média que os navios levavam do Rio de Janeiro a Liverpool – ele não conseguia pegar no sono; mesmo assim, a viagem transcorreu sem um transtorno sequer, com tempo bom e mares calmos.



LIVERPOOL, 1877

O frio entrava pelos ossos.

Era completamente diferente do clima de São Luís; ele se lembrava desse frio de outro tempo, nos campos e esteiros do Paraguai; parecia agora, porém, mais forte, apesar do casaco de lã e do chapéu de feltro.



Supervisionou a descarga da bagagem com cuidado, enquanto organizava o transporte até a estação; seria uma longa viagem até Charlton House, onde teriam de fazer contato com Horace Thurnbull, tesoureiro e testamenteiro de Mr. Charlton, para o conhecimento do inventário e a leitura do testamento.



A viagem de trem foi um reconfortante alívio; mesmo com a travessia oceânica sendo tranquila e sem incidentes, preferiam muito mais se sentir com terra firme sob os pés; os campos ingleses foram uma agradável surpresa para Júlio e uma confortável familiaridade para Agnes, que revia o lugar de sua infância; o verdejar que serpenteava pela janela do vagão alegrava sobremaneira as crianças.


A chegada a Sussex se deu por volta das dez da noite, a bagagem novamente descarregada e organizada em carruagens; no pátio de saída, os esperava um homem de meia-idade, suíças brancas emoldurando olhos cinza-azulados sem o menor resquício de brilho.

- Senhorita Charlton, eu presumo? – o homem se apresentou sem o menor traço de emoção, inclinando-se levemente – Sou Horace Thurnbull, guardião do inventário e do testamento de seu pai.

- É Senhora Meira agora, Sr. Thurnbull; este é o meu marido Júlio Meira, e estes são os meus filhos, Anna e Aurélio.

O homem pigarreou, como que a ignorar o constrangimento com a situação que se apresentava; limitou-se a dizer que os aposentos de Charlton House já estavam preparados para recebê-los; com gelada cortesia, sinalizou ao cocheiro que aproximasse a carruagem , onde então Agnes , Júlio e os filhos embarcaram, seguindo então para a casa; Thurnbull, então, embarcou num cabriolé e os seguiu.

Chegaram quase meia-noite; Agnes acomodara bem o pequeno Aurélio para que dormisse sem o incômodo dos solavancos; Anna, por sua vez, dormitava no colo do pai; a porta da carruagem foi aberta por um homem de porte altivo, magro, com um bigode meticulosamente arrumado; apresentou-se como Pritchard, o mordomo, que, tomando Agnes pela mão, ajudou-a a descer da carruagem; os dois lacaios que o acompanhavam se encarregaram da bagagem, levando-a para o interior da casa; Julio, carregando a filha, acompanhou a mulher, entrando na casa acompanhado do mordomo; lampiões foram acesos e, então, o Sr. Thurnbull despediu-se, avisando que viria por volta das duas da tarde, para a leitura do testamento.

A leitura do inventário e do testamento se fez conforme o esperado, com a listagem dos bens de Mr. Charlton, desde propriedades na França, uma villa nas proximidades de Florença, ações ao portador, além do controle acionário da firma do pai, Charlton & Co. tudo isso somado a uma renda anual de 150 mil libras.

Júlio observava impassível a leitura, pensando em como seria a vida daí por diante; uma coisa era ser escriturário, outra era ajudar Agnes a controlar e gerir tudo aquilo; guardou suas suposições para si, enquanto a voz tediosa e gutural de Horace Thurnbull continuava a listar os bens do falecido Sr. Charlton...

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XVI


O voo chegara em Heathrow com uma hora de atraso.




Desembarcaram com a preocupação de que Derek e Sonja, os amigos de Eliza que moravam em Londres, se desencontrassem deles; viram depois de sair do avião a densa neblina que rodeava o lugar; aquela paisagem já era comum para ela, que tantas vezes visitara a cidade, mas era uma completa novidade para ele, que apenas tinha noção por meio de livros, filmes e material publicitário; agora, era uma realidade que se apresentava; ela segurava firme a mão dele, caminhando em passo apressado, tentando ficar em um lugar que agilizasse a recuperação da bagagem; a azáfama de pessoas e a babel de idiomas que circulavam ali pareceu tonteá-lo.



Derek e Sonja esperavam em um dos cafés próximos e, assim que viram Eliza e Walter se aproximarem, acenaram; Eliza sorriu ao reconhecê-los e Walter sorriu igualmente, respondendo ao aceno. Derek era alto, de cabelos louros finos e olhos azuis, enquanto Sonja tinha cabelos negros e olhos castanhos; abraçaram Eliza efusivamente, pois fazia tempo que não se encontravam, a correspondência esporádica de alguns e-mails trocados ocasionalmente; mas o laço de amizade que os unia era grande; Sonja estudara com Eliza e Derek era um grande amigo que ela apresentou, dando um empurrãozinho para que o relacionamento decolasse.

Agora, ela estava surpresa por ver a amiga com um relacionamento sério; sempre vira Eliza como uma pessoa focada no trabalho, sem muito tempo ou disposição para nada além de estudos e projetos; mesmo o sorriso dava novos are, como se tivesse nascido uma outra pessoa. Walter simpatizara com eles e quebrou-se o gelo quando falaram em português fluente; embora dominasse bem a língua inglesa, ainda estava se acostumando com a atmosfera para ficar à vontade.

Depois de tomarem café, Derek os levou até o estacionamento, onde o carro já esperava; depois de muito tempo de trânsito intenso, chegaram ao apartamento dele no bairro de Bayswater, onde sugeriu que tomassem um banho, trocassem de roupa e descansassem um pouco, antes de começar a andar pela cidade.


- Mas não é o seu apartamento? Imagino que iremos incomodar.
- Nem um pouco. Será de vocês o tempo que ficarem aqui. Eu e Sonja iremos para a Itália em três dias, para passar algum tempo na Toscana; considerem minha casa a casa de vocês a partir de agora.
- Mas temos reservas; como faremos?
- Isso eu posso resolver. Não se preocupe, aproveite seu tempo aqui, vai gostar muito. Ficarei com Sonja no apartamento dela em Chelsea até o dia da viagem.

Walter foi até a cozinha, onde Eliza e a amiga conversavam e falou sobre a oferta de Derek; ela pediu que o amigo reconsiderasse, mas ele recusou terminantemente.
- Não se preocupe, minha amiga; era o mínimo que eu poderia fazer; deixe as reservas comigo; apenas você e o Walter relaxem e curtam a viagem; deixei um mapa sobre como vocês podem localizar a Charlton House; não vai ser difícil, pois ela é uma das propriedades já no começo da rodovia. Ao que parece, apenas uma pessoa toma conta do local e acho que não terão problemas.

Os amigos trocaram abraços e puseram-se a planejar para onde poderiam ir na noite londrina...

domingo, 11 de outubro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XV



SÃO LUIS, 1873

Ele acordou com o som dos bentevis.

Ela ainda dormia, o braço enlaçado nele, os cabelos soltos espalhados pelo travesseiro, o respirar leve e a expressão terna que o fez sorrir; parecia que ela sempre revelava um algo mais, como se, a cada tempo, uma nova e encantadora parte dela se fizesse descobrir. 




Pensou no tempo. Fazia um ano e meio que estavam casados, desde que ele criara coragem para falar dos sentimentos dele, de início com pequenas e veladas mensagens, até que finalmente falou a ela do que sentia; esperava uma solene rejeição, mas foi surpreendido com o brilho nos olhos que só os apaixonados possuem; tiveram, porém, de esperar que o período de luto pela morte do pai terminasse e foi com alegria que a cerimônia se realizou, na Igreja da Conceição, onde amigos, companheiros de faculdade e antigos camaradas de armas se acotovelaram para vê-lo se casar com Agnes. A alegria agora era parte de sua vida; tudo o que vivera antes, a dor, os ferimentos e todo o sofrimento da guerra ficaram finalmente para trás;



SÃO LUIS, 1875

O telegrama chegou por volta de onze e meia.

Ele recebeu-o das mãos do estafeta e sentiu que algo que parecia ser um presságio.

Agnes embalava o pequeno Aurélio, enquanto Anna, a mais velha, estava sentada quieta ao lado do berço. A vida corria tranquila; Júlio trabalhava como advogado da Booth Line, companhia de navegação que era responsável pelo tráfego não somente comercial, mas de passageiros entre os portos ingleses e franceses da costa atlântica e os da costa brasileira, de Manaus e Belém até o Rio de Janeiro; tinha igual dedicação com a política local, sendo um dos delegados do Partido Liberal na cidade, com uma possível indicação para disputar a vereança. Embora visse os amigos entrarem nos clubes abolicionistas ou mesmo agremiações republicanas, evitava tomar parte, pois não queria nenhum envolvimento com algo que pudesse comprometê-lo de forma tão radical; pensava no pai, um franco partidário do equilíbrio.



Mas aquele telegrama pesava em suas mãos como um aviso.

Entregou o telegrama para Agnes, que o abriu sem pressa; ela pôs o bebê no berço e afagou a filha por alguns minutos antes de abri-lo; fê-lo em movimentos rápidos e correu os olhos pela mensagem; súbito, deixou que o papel escapasse de suas mãos e recostou na poltrona com as mãos no rosto, chorando e soluçando convulsivamente; ele procurou confortá-la, mas ela não conseguia se acalmar; ele procurou acalmar as crianças, que já se agitavam com o estado da mãe; pegou o papel do chão, leu-o e entendeu o porquê;



Mr. Charlton, seu sogro, que o tinha indicado para o cargo na Booth Line, tinha falecido numa epidemia de febre tifóide em Calcutá; o corpo tinha sido transladado para a Inglaterra e Agnes precisaria voltar a Sussex, onde ficava a propriedade do pai, para ouvir a leitura do testamento e organizar os negócios e propriedades.

Não se enganara; naquele pedaço de papel, estava o sinal de que o mundo dele estava por sofrer uma mudança que ele jamais poderia imaginar...

(Continua...)

Créditos das ilustrações: Google Images

domingo, 4 de outubro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XIV


A proximidade dos dois era cada vez mais intensa.

Urgiam-se; as horas eram vividas como se nada mais pudesse existir passada a porta do apartamento dela ou dele; era como uma tempestade circunscrita naqueles metros quadrados, onde nenhum espaço era verdadeiramente suficiente.

Dividiam igualmente experiências de ambos os ambientes de trabalho; ele discorria os encontros de assessoria com empresários e autoridades, falava das coisas que tinha de engendrar no processo de construção de imagem e mesmo os pronunciamentos e discursos que tinha de escrever para aqueles nos quais, intimamente, sequer acreditava; ela dividia com ele as ideias e projetos que chegavam ao escritório; divertiam-se com as bizarrices que encontravam na jornada de trabalho e se admiravam das coisas interessantes que igualmente apareciam;

Mas sempre no meio de tudo o que discutiam a história das cartas e das fotos aparecia como que um lembrete de que aquele passado, que pouco a pouco se deixava descerrar, estava ali, ao alcance, como que a chamar para ser ainda mais deslindado; conversavam do assunto entre uma coisa e outra, como que a deixá-lo de lado, mas quase sempre ele voltava à baila; as fotos e os cartões postais ainda eram um mistério, pedindo para ser decifrado.


O mais importante assunto, porém, era o que planejavam enquanto abraçavam-se, antes de levantar para o desjejum; não tinham pressa; o sábado prometia ser de sol, mas não tinham sequer vontade de sair; o que mais os ansiava no momento era a possibilidade de fazer a primeira viagem juntos; ele entraria de férias no mês seguinte, ela poderia deixar o escritório sob a responsabilidade de Eunice até que retornasse de viagem; os principais projetos já estavam engatilhados e nada mais havia de importante na agenda; poderia dedicar o tempo inteiro para planejar todos os detalhes.

Pensaram em vários destinos, mas logo convergiram para uma viagem europeia; uma agência oferecia um giro de duas semanas pelas principais capitais, outra um passeio mais longo, mas de menor permanência em cada lugar; era uma decisão difícil, mas ambos queriam chegar a um plano de viagem que fosse muito bom para os dois;



Até que se lembraram dos cartões postais, que estavam com as fotos que tinham visto por último; por mais que tivessem praticamente um século de idade, poderiam ser uma interessante referência para saber por onde deveriam começar.

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Os dois arrumaram cuidadosamente a pilha de fotos e cartões; a maior parte era de passeios de família e os postais mostravam paisagens como Paris, Roma e Madri, mas uma foto chamou a atenção dos dois; era simples, mostrando uma casa que ela reconheceu como sendo do tipo vitoriano tardio, com mansardas no telhado e aspecto rebuscado; virou a foto e no verso estava escrito “Charlton House, Sussex, Aug, 12, 1911”; os dois entreolharam-se e não disseram nada e nem precisariam; podiam mesmo ler o pensamento do outro
...

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XIII


SÃO LUÍS, 1871

O choro acordou o pai.

Abriu os olhos, a vista se habituando lentamente à chama do lampião; virou a cabeça e, de início, não reconheceu a figura ajoelhada ao lado dele; sinalizou para Vicência, que cutucou Júlio de leve; o filho ergueu o rosto e contemplou o pai, sem logo demonstrar reação; ainda tinha na memória a indiferença, a ausência das cartas enquanto esteve na guerra, a discordância pelo fato de ter se alistado.

Tudo isso se dissipou quando o pai, movendo o braço esquerdo – o direito continuava inerte, paralelo ao corpo – buscou o rosto do filho; Júlio inclinou-se mais para perto dele, que tentava reconhecer os traços do filho no rosto que tocava; Vicência aproximou mais o lampião e só nesse momento os olhos de pai e filho se reencontraram; não houve palavras; o velho tentava balbuciar algo, mas Júlio o acalmou; abraçou-o então e os dois choraram; não havia mais naquele momento razão para mágoa ou mesmo ressentimento; as lágrimas corriam dos olhos do pai e do filho, o abraço como se contassem um ao outro a falta que sentiram, a ausência de cartas ou conversas; de repente, ele sentiu que as forças do pai faltavam; o abraço foi afrouxando, até sentir que ele não se sustentava mais; sentiu a respiração esmorecer até que ouviu o último suspiro...pousou-o suavemente na cama e cerrou-lhe os olhos; dentro de si, algo pareceu se quebrar; tonteou e, se rendendo à dor, desfaleceu no chão da alcova; parecia ouvir a voz da irmã...

Os olhos de Amália foram a primeira coisa que viu ao despertar; ela estava a colocar-lhe um pano úmido na testa, para refrescá-lo. Agnes permanecia junto à porta do quarto, em silêncio; ajudara a irmã dele a colocá-lo na cama e agora, depois das circunstâncias da chegada, podia observá-lo melhor;

- Acordou então, meu irmão – disse ela sem ênfase – poderia abraçá-lo por retornar vivo, mas não sei se posso fazer isso agora, principalmente depois do que aconteceu.

- A dor é igualmente minha, irmã;  pensar que ele pode ter se agarrado à vida achando que não ia me ver voltar vivo.

- Ele jamais acreditou quando Lucio disse que podias ter morrido em batalha; que estavas desaparecido; ele sempre acreditou que voltarias.

- Sabe como são as coisas no exército, minha irmã; nem o correio eles conseguiam entregar direito; nem todas as tuas cartas eu recebi; tenho algumas nos meus alforjes, assim como cartas que escrevi e nunca consegui te enviar; mas e o Lucio, como ele está? Pensei que já estivessem casados.

- Depois que ele trouxe notícias suas ao nosso pai, ele teve de cumprir um turno em Buenos Aires como representante do almirante Tamandaré, mas na cidade grassava uma epidemia de cólera e ele morreu em uma semana; tive igualmente minha cota de dor; não posso dizer que eu o amava, mas ele era um homem bom e decente e eu tinha por ele grande afeição.

Procurou não prolongar muito aquela conversa com a irmã; a dor era algo que se ia dissipando lentamente, a seu tempo e jeito; pediu a ela sabão de barbear e uma navalha, pois iria se livrar da barba que deixara crescer durante a guerra; pediu à Vicência que queimasse o dólmã, a capa, os culotes e mesmo as ceroulas, pois nada queria que tivesse as marcas de morte e sangue; preservou apenas a medalha de bravura que recebera, hesitando em se desfazer dela; escanhoou-se devagar, usando a navalha com cuidado, procurando recuperar o hábito há muito abandonado; deixou apenas as suíças, na altura do meio do rosto; não era mais o jovem imberbe de antes; preferiu adotar essa aparência para se distanciar do passado e encarar o futuro com um novo olhar. Levantou-se, tomou um dos ternos que deixara quando se alistou e percebeu que emagrecera a tal ponto que seriam necessários reparos para ajustar as medidas a um molde completamente novo.

Depois de tomar o desjejum, ajeitou-se e tomou um tílburi até o Cemitério dos Passos, passando pelo mercado e comprando flores para colocar na sepultura do pai; dormira um dia e meio derrubado pela dor e pelo cansaço, não conseguindo ser desperto para o enterro do pai; “talvez tenha sido melhor assim”, pensou, enquanto o tílburi sacolejava levemente; chegou no momento em que um cortejo chegava com dois caixões para serem sepultados; reconheceu no meio das pessoas um velho colega de Liceu, Amaro Gonçalves, ar contrito, chapéu na mão e caminhando devagar ao lado dos ataúdes.

- Meus pêsames; oxalá tivéssemos melhor circunstância para nos encontrarmos – disse Júlio, enquanto apertava a mão do amigo.

- Não somos senhores delas, não é mesmo? – respondeu sem muito vigor Amaro – pessoas vêm e vão; uns logo, outros um pouco depois - Hoje estamos enterrando dois amigos nossos que sobreviveram à guerra, apenas pra morrer de doença aqui; ao menos não morreram longe dos seus; não sei o que seria morrer em terra estranha, não ter um enterro cristão.

Júlio então viu, encabeçando o cortejo, dois casais de meia idade, em passo compungido, interrompido por choro e soluços; pensou nos que viu morrer lá no Paraguai, sem terem nem como ser enterrados, apenas deixados pra que os elementos os consumissem.

Desviando do féretro, se dirigiu até a sepultura do pai, no jazigo da família; os zeladores ainda arrumavam as corbelhas que haviam sido deixadas no enterro, organizando-as cuidadosamente ao redor da entrada; girou a chave e entrou devagar, vendo as campas do pai, do avô e do bisavô, com as respectivas datas de nascimento e morte; meditou em silêncio por longos minutos até depositar as flores na campa onde jazia seu pai; no silêncio, parecia sentir a presença dele e lembrou-se de como morrera em seus braços; vira a morte em batalha, tantas vezes que virara fato banal no dia a dia de campanha, mas nada o preparara para a dor da perda do pai, especialmente sem poder ter tido a chance de pedir perdão...

Voltou para casa pelo fim da tarde, ainda imerso em pensamentos; indagava por que tantos morreram e ele sobrevivera, apenas para ver o pai morrer; era algo que o agoniava, que não o deixava em paz, parecia corroer lentamente a alma.

Agnes e Amália estavam 
lendo na sala quando ele chegou; pousou o chapéu de feltro mole no mancebo do vestíbulo e a bengala de castão de prata no suporte abaixo do espelho; só então sentou-se na cadeira de espaldar alto que pertencera ao pai, ainda pensativo; Vicência, pressurosa, serviu a ele um cálice de licor, o qual ele agradeceu polidamente, antes de sorver um leve gole.

Agnes e Amália repararam nele de maneiras diferentes; a irmã via a transformação do semblante dele, antes de uma radiância que contagiava e , agora, parecia ter se perdido; em seu lugar, apenas uma profunda tristeza; Agnes via igualmente essa transformação, mas algo nela fazia com que quisesse ir na direção dele, como que a querer aconchegá-lo; nos olhos opacos e sem vida, o querer de iluminá-los...


(continua...)

domingo, 20 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XII


Eliza e Walter cuidadosamente arrumaram as cartas e as recolocaram no veludo; só depois notaram um outro pacote, amarrado com uma tira de couro macio; desamarraram-no e o conteúdo se revelou um novo amontoado, dessa vez de datas mais recentes, já do século XX; pareciam postais, junto de um grupo de cartões que, retirados, revelaram ser fotos de viagem, em diferentes lugares e situações; outro grupo revelou novas fotos, mas desta vez eram as de um jovem em uniforme militar que Walter reconheceu sendo da I Guerra, com o quepe e a bandoleira diagonal típicas da cavalaria da época; virando-a , pôde ler no verso, “Charlton Manor, Sussex, September 12, 1914, Lieutenant George Charlton Meira Crawford, Royal Yeomanry”. O jovem tinha olhar firme e o peito estufado demonstrava o orgulho com o qual a foto foi tirada. Outra foto o mostrava montado, com todo o equipamento, como que aguardando ordens; a legenda atrás dizia: “Bois de Quevrecháin, October, 22, 1914.


Entreolharam-se de forma cúmplice enquanto arrumavam tudo, deixando o pacote em cima da mesinha pequena ao lado da espreguiçadeira; o dia se revelara uma surpresa, mais uma entre tantas descobertas cada vez que se abria algo relacionado às coisas do pai dela;

Ela tirou um pendrive de uma gaveta e inseriu no aparelho de som; os acordes de “Rhapsody in Blue” de Gershwin preencheram a sala, enquanto os dois sentavam no sofá; recostaram-se um no outro, abraçados em silêncio enquanto a música enchia a sala; lá fora, o burburinho dos carros no trânsito noturno.


No dia seguinte, despediram-se na intensidade que os dois viviam cada vez mais plenamente; ela se surpreendia com a descoberta de sensibilidades que não imaginava possuir; ele se encantava com a maneira que o querer dos dois combinava; amaram-se mais uma vez antes de cada um seguir seu caminho, não sem antes combinar de se encontrarem logo depois do expediente; o olhar dela ansiava que ele ficasse; o olhar dele era a luta entre a vontade e a responsabilidade...

O dia no escritório foi de muito movimento; havia um recado da Secretaria de Obras da Prefeitura, sobre um workshop de Patrimônio com delegados da UNESCO; Eunice passava a agenda do dia enquanto ela revisava documentos sobre projetos propostos, assinalando os que tinham prioridade dos que não valiam nem uma passada de olhos; respirou fundo enquanto pensava nas pessoas que ainda tinham a visão leiga de que “arquitetos podiam fazer milagres”.

Ainda pensava em tudo que acontecera; o leve recordar de tudo arrepiou a espinha; parecia ainda sentir os toques, os beijos, o afago, a explosão e o arrefecer enlaçados; procurou voltar o foco para a agenda; Eunice notou algo diferente nos olhos da chefe, algo rápido, mas que a fez perder o prumo, recobrou-se igualmente e continuaram a organizar os compromissos do dia e da semana; depois de tudo arrumado, saiu para organizar as reuniões do dia e os relatórios de projetos; ao fechar a porta, lembrou-se da expressão nos olhos da chefe, poucos segundos que pareceram , para a jovem, significar muito; era por demais conhecedora das emoções, as vivia intensa e livremente e reconheceu aquele olhar mais que qualquer coisa.

Tinha certeza de que a chefe se apaixonara...

domingo, 13 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XI


PROVÍNCIA DO MARANHÃO, OUTUBRO DE 1871

Eram duas da manhã quando ele virou o Largo da Forca Velha, tomando a rua do Mocambo; salvo por um ou outro transeunte, na maioria negros de ganho(1) ou tigres(2), a rua estava deserta; ajeitou o bornal no ombro e continuou, o passo lento e sem pressa. 



Chegou à Rua das Crioulas, iluminada apenas com a luz mortiça dos lampiões de gás; pensava se iam reconhecê-lo, se ainda lembravam de como ele era; ainda conservava as cartas da irmã, mas não tinha conseguido enviar as suas, pois durante a convalescença no hospital de sangue, não conseguira fazer contato com o correio para que as entregasse.


Vinha com a dor remanescente das feridas já cicatrizadas, mas algumas deixaram marcas mais profundas; recuperara-se a tempo de presenciar as batalhas de Peribebuí e Campo Grande, onde o exército paraguaio deixou de existir como unidade combatente; recorriam no desespero a mulheres, velhos e meninos; vira os cadáveres na rota para Assunção, destroçados por balas de canhão e metralha, rostos e corpos desfigurados pelo horror da guerra.



Avistou a casa da esquina, hesitando um pouco antes de retomar a caminhada; pensou no pai, sem trocar uma carta sequer desde que se alistara; pensava agora que teria sido melhor que não o fizesse; o espirito marcial como que o hipnotizara, sonhando em voltar coberto de glória e reconhecido como herói; de que valera? O que viu foi apenas destruição, morte e sofrimento; sentia-se afortunado em voltar, poder rever a todos e principalmente, a família.


Criou coragem e continuou.

Parou diante da porta de madeira escura, com uma aldrava de bronze se destacando no centro; pensou duas vezes antes de bater, imaginando como iriam recebe-lo; cofiou a barba negra, que crescera na convalescença; embora o ordenança quisesse escanhoá-lo, não quis; queria como que se esconder, mascarar-se depois de toda a aquela carnificina que presenciara; perdera amigos, colegas com quem estudara e com quem partilhara alegrias e conquistas; só restara a casa, diante dele, como que a admoestá-lo por partir para uma guerra que, agora, via como completamente sem propósito.

Bateu na aldrava três vezes, lenta e compassadamente; o coração batia mais rápido; quis correr dali, mas agora era tarde; talvez não devesse ter voltado, afinal; os pensamentos, porém, foram quebrados pelo clangor da fechadura sendo aberta e pelo ranger das dobradiças; viu o lampião de opalina branca, carregado por um vulto que, ao colocar a cabeça pra fora, reconheceu como Vicência, a governanta, que tinha sido ama-de-leite de Amália; a mulher levantou o lampião para ver melhor, divisando a figura barbada, vestida em um uniforme surrado e uma barretina puída.
- Que é que vosmecê quer aqui? Não temos nada não; é melhor vosmecê ir embora ou eu chamo o dono da casa;
- Eu mudei tanto assim, Vicência? – perguntou ele, enquanto tirava a barretina e punha o rosto à luz.

Vicência segurou firme o lampião, mas as forças faltaram no susto; ele a segurou, aparando-a com a mão livre; ela custava a acreditar no que via; o filho do seu patrão, dado como desaparecido, estava ali, na frente dela; o rosto estava encovado, parecia mais alto e mais magro, mas eram os mesmos olhos negros vivos, que ela reconhecera; ele amparou-a na porta e ela o fez entrar.
- Patrãozinho! O senhor tá vivo! O senhor tá aqui! Minhas rezas foram ouvidas! Pedi tanto pela proteção do senhor!
- Então tenho de agradecer, Vicência, por tudo; foi um longo caminho, mas estou aqui. Quero ver meu pai e minha irmã; como eles estão? Me fale, quero saber de tudo

Ela, então baixou a cabeça, como a não querer encará-lo. Lágrimas correram dos olhos da negra, e a custo conteve os soluços; ele a fitou com olhos inquisidores.
- Seu Aurélio tá na cama, Patrãozinho, dali ele não saiu mais desde que o noivo da sinhaninha Amália, seu Lucio, disse que o senhor tinha sumido na batalha; caiu estuporado; quase não fala, só faz sinal com a mão; tá que dá pena. A menina Amália foi ajudar D. Emiliana, prima do seu pai, porque a filha dela teve criança e quase morreu de mal-de-sete-dias; passou a noite lá mas volta daqui a pouco; a menina Agnes, filha do inglês brancarão vizinho nosso, ficou tomando conta do patrão;

Ele a acompanhou pela casa, seguindo o bruxulear da luz do lampião; nada mudara muito, a não ser uma espreguiçadeira na sala, que deveria ser por causa do pai; passou pelo corredor em passo silencioso, para não despertar o pai, que já devia estar dormindo
- Venha cá patrãozinho, deixe eu dar um jeito no senhor. Vou preparar um banho quente e trazer a navalha e o sabão de barba
- Queria ver o meu pai antes, Vicência, não ficarei tranquilo enquanto não fizer isso.
Ela tomou então a direção da alcova, onde estavam os aposentos do pai; nisso, outro lampião quebrou a penumbra e ele vislumbrou a figura de uma jovem de cabelos louros escuros, que vinha na direção contrária; lembrou-se da moça que a irmã falara, filha de Mr. Charlton, agente comercial inglês amigo do pai; vestia um camisolão azul claro, encimado por um peignoir também azul.
- Vicência, quem é esse homem? Não me lembro dele visitando o Sr. Aurélio; o que ele faz aqui a essa hora?
- Menina Agnes, esse é o seu Júlio, filho do patrão, o que o seu Lucio disse que tinha sumido na guerra; ele voltou! Está aqui com a gente!

Agnes aproximou o lampião e viu as faces encovadas, os olhos negros, o semblante emaciado, o uniforme em andrajos; lembrou dos daguerreótipos que Amália mostrara, um jovem sorridente e bem-humorado, vestido de forma elegante; tentou ver a correspondência entre as duas figuras. Mas parecia difícil reconhecer no que via o jovem dos retratos.
- Agnes, preciso muito ver meu pai; sei que a hora não é a mais propícia, mas preciso ao menos vê-lo para depois cuidar de mim; em outro momento conversaremos melhor.

Ela, então, o guiou para a alcova, onde o pai dormia pesadamente; mal o reconheceu; os cabelos tinham encanecido e rareado, a testa eivada de profundas rugas; um dos braços estava sobre o peito e o outro, paralelo ao corpo; ressonava pesadamente, parecendo não se incomodar com o bruxulear da chama do lampião; ele então ajoelhou-se ao lado da cama do pai , e, pela primeira vez desde que voltara, desabou em lágrimas...


(1) Negros de Ganho eram escravos que faziam venda de produtos para os seus senhores, mas, dentro de certos aspectos , tinham mais autonomia e recebiam uma porcentagem do produto das vendas; muitos economizavam para comprar a liberdade e acabavam virando pequenos empreendedores, dai viverem, no dizer da época, "No ganho"



(2) Tigres eram escravos que recolhiam, em tonéis chamados "cabungos", todos os dejetos das casas - como nas cidades ainda não havia um serviço de distribuição de água e esgoto, eles carregavam os tonéis e os despejavam nos rios ou em praias; na cidade de São Luís do Maranhão o ponto de descarga era em uma praia chamada Praia do Caju, que foi aterrada nos anos inciais do séc. XX para a construção da estação ferroviária, hoje sede da Secretaria de Segurança Pública; o nome Tigres foi dado por causa dos resíduos que escapavam dos tonéis e caíam no corpo, dando-lhes uma aparência "tigrada"


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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE X


Walter examinou cuidadosamente o conteúdo do baú, as mãos percorrendo cada objeto como se fossem joias; tentava decifrar a mensagem implícita neles, sentindo a energia que parecia emanar de cada um; Eliza, à distância, contemplava-o com um misto de admiração e curiosidade; quando terminou de ver tudo, segurava a foto do pai dela junto com o idoso Antônio Ribeira, na cama da enfermaria do asilo.
- Então é isso – respirou fundo – o seu pai juntou todas essas coisas como uma forma de contar a história das pessoas que viveram isso, mas não conseguiu;
- Sim, foi desse jeito; ele me deixou com essa tarefa nas mãos – respondeu calmamente – até tentei continuar e segui algumas pistas, mas ainda penso que estou indo muito devagar – completou enquanto o abraçava.
- As coisas às vezes são assim, pensamos que podemos estar no caminho certo e de repente nos enganamos; mas sempre é tempo de voltar de onde erramos e fazer tudo certo.

O olhar dele se voltou para os maços de cartas dentro do veludo; todos tinham sido desatados exceto um, ainda com o laço de fita; mas, diferente dos que tinham sido desatados antes, este era atado com um laço de fita preta e as cartas, que nos outros maços estavam sem nenhum tipo de dano salvo os do tempo, estavam em parte rasgadas ou com manchas que pareciam chamuscos; olhando mais de perto viu que não eram chamuscos e, sim, manchas de um tom marrom escuro; em algumas a caligrafia era firme , em outras vacilante; pareciam ser da mesma pessoa , mas em momentos diferentes, como se não tivesse forças pra escrever; Walter desatou o laço, espalhou as cartas pela mesa e começou a ler...

“MONTEVIDÈO, 12 de fevereiro de 1866

Caros Pai e irmã

A urgência me fez escrever uma carta para os dois; os preparativos para a movimentação das tropas urgem, pois não teremos muito tempo até embarcar; aproveito e escrevo estas linhas de inopino, para saberem como as coisas andam e como estou indo.
Meu pai, sei que o senhor questiona minha atitude, mas pensei muito antes de me decidir; me senti no dever cívico de me alistar, pois não fomos nós que agredimos o Paraguai, mas ele nos agrediu; há relatos de muitas atrocidades na província de Mato Grosso e no Rio Grande do Sul; aqui os soldados andam uns nervosos , uns excitados, mas todos muito dispostos para lutar; comissionaram-me como tenente de um batalhão de voluntários, recrutados entre a vizinhança da faculdade de Direito e mesmo alguns segundanistas; muitos chegaram sem nem saber como segurar um rifle; tento da melhor maneira possível fazer com que fiquem treinados e azeitados para a frente de batalha.
Minha irmã, fiquei feliz com o seu noivado com o Lucio Faria; encontrei-o uma vez na Corte, recém comissionado para o Arsenal de Marinha; ele me parece muito entusiasmado, mas, pelo que eu me lembro, não ficaste tão empolgada quando o conheceste; recordo da tua frase que dizia que ele ‘nem tinha te feito arfar’, mas deves tê-lo conhecido melhor para te decidires.
Bom, tenho que interromper a missiva agora, pois sou chamado no posto de comando; espero ter melhor oportunidade para escrever mais longamente; a tropa já se prepara para partir; espero que essa carta encontre os dois em boa paz e que todos estejam bem.

Sem muito para dizer
Pedindo sua bênção, Meu Pai
E todo o carinho para ti, Minha Irmã
Do filho e irmão
Júlio”



Eliza e Walter examinaram com cuidado cada uma das cartas do último maço; algumas, de tão chamuscadas, não puderam ser lidas, pois se desmancharam ao toque; outras, porém, puderam ser manuseadas e finalmente puderam ser abertas; a ansiedade tomava conta dos dois, mas abriram uma de cada vez, para tentar preservar as que ainda podiam ser lidas.

“POSTO AVANÇADO DE CURUPAITI, 11 de outubro de 1867

Cara irmã

Espero que consigas receber esta carta antes de qualquer outra coisa; imagino que sempre deves ir ver se meu nome está na lista de mortos que, penso, devem estar afixando na porta do Jeremias tabelião; se meu nome não está lá, então não deixe de acreditar que eu voltarei;
Cheguei no dia em que aconteceu o desastre; só o que se via eram mortos amontoados e feridos agonizantes; um de meus colegas oficiais sofreu um colapso nervoso e não diz mais coisa com coisa; o resto da tropa está num estado tal que muitos podem nem sequer lutar, preferindo fugir a sequer vislumbrar o inimigo...
Uma novidade: lembra-se do Antônio Ribeira, que tinha levado uma encomenda minha a São Luís? Pois é, eu o encontrei aqui, alistado no regimento de caçadores como capitão; conversamos rapidamente, pois ele já estava engajado em combate com colunas móveis paraguaias perto de Humaitá; ainda aguardo ordens para seguir em frente, mas acredito que logo seguirei com os outros; reze por mim irmã, e diga ao meu pai que entenderei se ele não me responder.




Não sei se conseguirei enviar outra missiva tão logo; o correio aqui é um tanto irregular, mas farei o possível para mandar notícias assim que puder; diga a meu pai que peço a bênção dele.

Pedindo seu amor e suas preces
Seu Amantíssimo irmão
Júlio”

Walter separou outro grupo de cartas do maço; pareciam, dessa vez, desordenadas, como se arrumadas às pressas, num aparente estado de confusão; pegou-as com cuidado, desdobrando cuidadosamente, retomando então a leitura, com Eliza ao lado, atenta a tudo.

“HOSPITAL MILITAR DE CORRIENTES, 04 de novembro de 1867

Cara Irmã

Se lês estas linhas agora, é porque o cabo Terêncio segurou o meu braço para que eu pudesse escrever; desculpe minha letra sem alinhamento, mas é que não tenho muito jeito agora para segurar direito a pena; ainda não me recuperei bem dos ferimentos que recebi, mas posso asseverar que logo estarei longe disso e de pé de novo. O progresso das tropas é lento e difícil, pois não existem mapas precisos da região e somos presas fáceis de emboscadas e escaramuças; o Coronel Pena, comandante do regimento, tombou há dois dias, vitima de um riflero paraguaio; teimou em acender o cachimbo numa avançada à noite e não viveu para dar o primeiro pito; caiu com o fósforo ainda na mão...
Imagino que tenhas tentado escrever, mas não recebi tua carta; o cabo Terêncio diz que os estafetas têm sido atacados por piquetes paraguaios em busca de despachos dos comandos, mas mesmo assim esperarei por ela; sinto falta de notícias tuas e de nosso pai, mas acho que ele ainda não me perdoou por ter me alistado, mas as coisas são assim; apenas o tempo pode fazer algo; não sei ainda quando retornarei à frente de batalha, mas espero sair logo da convalescença; tentarei por qualquer meio te enviar esta, assim que for possível;

Pedindo seu carinho de irmã e suas preces
Seu amoroso irmão que te beija nas faces
Júlio”




Já era tarde quando Eliza e Walter se aperceberam do tempo; arrumaram as cartas em uma mesinha perto do baú e foram à cozinha preparar o jantar; teriam ainda um tempo juntos até que ele fosse embora, pois no dia seguinte o trabalho aguardava; desta vez, ele se encarregou do jantar; ela observava, da mesa da cozinha, o desdobrar de uma refeição preparada calma e apaixonadamente; aproximou-se e o abraçou por trás; os braços dela o enlaçaram e ele respirou fundo, enquanto dava os toques finais no prato...

domingo, 30 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE IX


Ela acordou antes.

Viu o contorno do corpo dele coberto pelo lençol, a nuca e os cabelos dispersos no travesseiro; ainda se buscava depois da tempestade que sentira; era como se um rio inteiro jorrasse incontrolável por ela, rompendo todas as barreiras que um dia ela impusera a si mesma; era como se uma parte dela se libertasse, se revelasse depois de tanto tempo em uma reclusão auto-imposta...

Tudo passou -lhe nos pensamentos como num filme: a roupa apressadamente tirada, a urgência de quererem-se, que a fez voar, cavalgar, mergulhar num mundo que , até então, nem mesmo a palavra era capaz de sequer abranger; abriu todas as portas dos seu ser pra ele, assim como ele abria as portas dele para ela, numa entrega nova a ambos;

Procurou levantar devagar, para não o despertar; ele dormia um sono forte, mas sua respiração era suave como se apenas dormitasse; foi apenas ela levantar-se por completo que ele a alcançou, abraçando-a ternamente e beijando-lhe a nuca
- Desculpe, não quis te acordar; ia preparar algo para o café; coisas orgânicas, não sei se gostas.
- Claro que sim, alterei minha alimentação há algum tempo, quando tive um caso sério de intoxicação. Desde então me alimento quase exclusivamente de orgânicos.
- Com o que você se intoxicou? Não tem o tipo que pode ser suscetível a isso.
- Bom, antes de trabalhar com relações públicas eu me formei em história e me especializei em arqueologia; trabalhei três anos em sítios arqueológicos e num deles me aconteceu com a comida que era fornecida; depois fui diagnosticado com intoxicação aguda por agrotóxicos, mas sobrevivi, aprendendo a lição de apenas comer orgânicos, sem agrotóxicos.

“Mais uma coisa em comum”, pensou ela enquanto sorria; preparou o chá com ervas e o pão integral, colocando tudo no centro da mesa; ele serviu-se, tomou um gole do chá e reparou o espaço do apartamento com as coisas do pai dela; viu o baú, encostado a um canto, e os maços de cartas meticulosamente arrumados em uma mesinha perto dele.
- Coisas do seu avô? - perguntou de forma hesitante; não queria ser invasivo.
- Sim, são dele, ele era obcecado com a Guerra do Paraguai e colecionava coisas da época; ultimamente andei vasculhando algumas coisas pra ele, mas acho que não consegui ir muito adiante; me sinto mesmo um tanto culpada por não estar mais envolvida.
- Talvez eu pudesse te ajudar – aparteou ele – ainda sou bom em levantar dados de pesquisa e não perdi a mão como historiador; poderia dar uma olhada lá?
- Apenas vou pedir que tenha cuidado, algumas coisas são bem antigas.
- Não se preocupe, seu lidar bem com isso. Você tem luvas descartáveis? Assim posso examinar sem danificar.
-Acho que tenho sim, vou buscá-las.

Ela voltou com uma caixa pequena, de onde ele tirou um par de luvas de borracha, calçando-as cuidadosamente; indo até a varanda, abriu o baú e ficou fascinado com o que viu.
- É, parece que você tem um monte de histórias aqui – disse com uma expressão de admiração e surpresa.
- E eu tenho que te contar por que tenho tudo isso aqui; é uma história longa.
- Não esqueça que gosto de histórias longas – riu enquanto a beijava – temos todo o tempo do mundo, não? Depois de hoje, acho que temos muito ainda pela frente.

Ela riu enquanto o ajudava a abrir o baú; se sentia, pela primeira vez na vida, como se a felicidade lhe tivesse dado asas...

domingo, 23 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE VIII



A vibração do celular a acordou num estalo.

Tentou segurá-lo nas mãos, mas ele parecia escapar; deslizou até o canto da cama,mas a ligação já tinha caído na caixa postal; ao verificar, viu que era de Eunice, deixando um recado sobre a reunião de conciliação de contas na segunda-feira; regurgitando a frustração, jogou o celular no recamier e despiu-se, indo para o chuveiro.

Deixou a água cair por cinco longos minutos, sentindo o deslizar pelo corpo; respirou fundo, e, de repente, sentiu-se como aquecer em ondas, um calor que não vinha da água, que parecia conduzi-la a algo que, para ela, parecia perdido, longínquo, apenas como uma lembrança; de início, tentou resistir, mas aquilo era mais forte que ela; rendeu-se e se deixou levar, até que, num átimo, viu-se mais intensa do que jamais fora na vida...

Enxugou-se e vestiu o robe sem pressa; olhando pela janela, viu que o sábado prometia ser nublado, sem muita promessa de melhorar; preparou o desjejum como de hábito, comendo sem muito prestar atenção, até que os acordes de Rhapsody in Blue – o toque que era a marca registrada dela – foram ouvidos de novo; lembrou-se do celular no quarto, chegando antes da chamada cair na caixa postal, só depois notando que a torrada ainda estava em sua mão; atendeu e reconheceu a voz de Walter, que se desculpava por não ter podido atender as ligações, pois estava resolvendo detalhes do apartamento que alugara. Combinaram de se encontrar num restaurante próximo do apartamento dela, onde finalmente conversariam...

Eram emoções desconhecidas para ela.

Jamais tivera interesse ou sequer atração por ninguém , mesmo em seu tempo de estudante; Lisandro, advogado e executor do testamento de seu pai, jamais escondeu a dedicação que sentia por ela, mas jamais tinha dado a ele esperança sequer; sempre fugiu de qualquer tipo de envolvimento, brigando inclusive com a terapeuta, que dizia que ela devia tentar algum relacionamento para “drenar energias”. Agora, ria consigo mesmo de tais lembranças...

Pela primeira vez vestiu-se com ansiedade; escolheu pantalonas de linho bege e uma blusa solta, que caiu confortavelmente; arrumou os cabelos com apuro e viu o tempo; ainda nublado, mas parecia que não iria chover tão cedo; saiu da garagem rápido, surpreendendo o porteiro; chegou ao restaurante primeiro, escolhendo uma mesa de onde podia ver todo o movimento de entrada. Ele chegou cinco minutos depois e não precisou de muito para localizá-la; acenou levemente e se dirigiu a ela num passo contido, como se quisesse decorar cada momento da aproximação; trocaram um aperto de mão tímido, como se estivessem se conhecendo naquele momento.



- Fiquei feliz por você ter vindo – disse ele, meio sem jeito – mais uma vez me desculpe por não ter atendido suas ligações; estava no meio da montagem do apartamento e não ouvi o telefone tocar.

- Não tem problema, pudemos nos falar depois e aqui estamos; estou igualmente feliz por vê-lo de novo.

Conversaram, em um primeiro momento, de amenidades, ele falando da nova empresa em que estava trabalhando , uma agência de publicidade, do apartamento que acabara de se mudar e de alguns hobbies; ela sentia que ele precisava estar mais confortável para começar a falar o que realmente queria; deu a ele o espaço necessário para que ele se sentisse à vontade.

Então, sentindo-se mais confiante, finalmente abriu-se, não numa torrente de palavras, mas num falar pausado, como se quisesse que nada ficasse perdido ou mal-entendido para ela

- Entenda, eu não poderia ficar como estava e onde estava, especialmente por causa do que se passou comigo; não poderia ficar lá porque...

O silêncio dele foi como se nada existisse ali, apenas os dois; ele pigarreou, folgou um pouco o colarinho e continuo no mesmo falar pausado

- Porque eu não poderia ficar sentindo o que eu sentia, e ainda sinto, por você; é mais forte que eu e é algo novo para mim; sempre fui profissional mais que pessoa, e isso me fez recuar e pedir demissão. Achei que jamais poderia falar o que falo agora, por isso tomei coragem e deixei a mensagem no envelope de minha carta de demissão.

Ele segurou a mão dela, apertando-a levemente; ela o encarou e sorriu sem falar nada, mas, por dentro, sentia que tinham mais em comum do que podiam imaginar; ele, igualmente , sempre pusera a carreira e a profissão acima de tudo, negando-se a viver seu lado pessoal em função do trabalho.

Almoçaram como se o tempo não passasse; cada olhar era como se fosse a mais animada das conversas, uma descoberta de sensibilidades que ambos se perguntavam por que não tinha sido descoberta antes. Depois que terminaram, dirigiram-se ao valet para pegar os carros, mas ela, como se não quisesse se despedir, disse: “vamos conversar mais, acho que temos muito ainda por falar”. Ele, tomado de surpresa, apenas assentiu com a cabeça, seguindo-a. Chegando ao prédio dela, esperou enquanto ela entrava na garagem, ficando no estacionamento dos visitantes, a aguardar a liberação da entrada pelo porteiro; este o observou por alguns minutos, até que o interfone tocou e a fechadura do portão deu um estalido seco, avisando-o de que podia entrar.

O elevador parecia subir mais devagar do que aparentava. Ele procurou disfarçar a ansiedade tamborilando os dedos na parede, imaginando que julgamento ela poderia estar fazendo dele; chegou mesmo a pensar que seria como um joguete, apenas diversão, mero passatempo. Dissipou tais pensamentos quando o elevador enfim chegou no andar; ela esperava com a porta aberta, convidando-o a entrar; perguntou se queria alguma coisa, alguma bebida; ele aceitou água, pois ficou com receio do que o álcool pudesse causar, especialmente naquele momento.

Conversaram mais um pouco, ele observando discretamente cada detalhe do apartamento, a mistura de decoração antiga e nova, recantos que pareciam ter vida própria; reparou na estante perto da sacada, os objetos parecendo que há tempos não eram arrumados.

- Aquele recanto era do meu pai – disse ela, como se adivinhasse os pensamentos – moramos juntos até a morte dele. Até então eu era como você, apenas o meu trabalho valia; ele mesmo me dizia que a vida não era apenas dever, mas prazer; não o levei muito a sério, como você pode ver.

- Também fui assim – respondeu ele na mesma fala suave – fui criado por duas tias solteironas que me diziam que a vida não era apenas a cara nos livros e trabalho, a vida tinha de ter arte.

Segurou a mão dela novamente, dessa vez com um pouco mais de firmeza; ela sentiu a energia do toque, o calor do aperto; deixou-se conduzir, enquanto ele a fitava com um fulgor nos olhos que não precisava ser traduzido; lentamente, a mão dela trouxe o rosto dele mais perto e os lábios se colaram devagar, mas não havia mais o que represar; a torrente dos dois rompeu as últimas reservas e não mais a razão, mas a pura vontade os guiava, os lábios como a querer devorar os anos de ausência, de solidão, de todas as coisas intensas há tanto tempo esquecidas...

(Continua)

Créditos das imagens : Google Images

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE VII


Eliza segurava o celular nervosamente; buscou o número na agenda, mas lembrou-se do envelope e do número anotado na borda; repetiu os números no teclado, esperou enquanto o sinal de chamada se repetia até que recebeu o recado de que o celular estava fora de área ou desligado; respirou fundo, no intervalo do pensar se deveria deixar um recado ou não; preferiu não fazê-lo, esperando um pouco para ligar novamente...

Olhou para a cama: lá estavam os maços de cartas; imaginou o que poderia ter acontecido aos correspondentes, pois havia um hiato de datas de um maço de cartas para outro; separou os maços, amarrados por tiras de seda esmaecida, enquanto discava novamente o número dele no celular; procurou mais uma vez ler, uma forma de controlar a ansiedade que crescia cada vez mais...


RECIFE, PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO, 12 de Abril de 1863

Cara Irmã

Não me caibo de contentamento ao ver que me formei e já estou em vias de trabalhar com o pai do Mario Fonseca, um de meus colegas de curso; ele disse que tenho potencial para ser um bom advogado, apesar do meu juvenil entusiasmo, que , no dizer dele, pode arruinar as coisas; meu amigo, filho dele, me disse que eu conseguira conquistar o coração do velho, pois “jamais tinha visto o pai dar qualquer elogio, mesmo o mais lacônico”.

Fiquei feliz com a presença de vocês em minha festa de formatura; pela primeira vez vi meu pai esboçar um sorriso, acho que porque ele finalmente acreditava que eu havia me formado; fico pensando que o nosso pai realmente achava que eu estava no caminho certo. Mas isso ficou para trás; agora, tenho de pensar no futuro.

Agora me preocupo apenas com as coisas adiante de mim; podes acreditar ou não, mas nem mesmo a política tem me atraído muito para o cenário dos acontecimentos aqui em Recife; já há alguma agitação por conta dos acontecimentos no Prata, mas nada que mexa muito com o dia-a-dia.

Sei que não tens novas para mim, senão terias me escrito há mais tempo contando cada coisa que tivesse acontecido; mas mesmo assim folgo em receber tua carta, sempre uma razão de felicidade no entediante mundo de regras e normas as quais convivo sempre

Beijo Afetuoso

Do Teu Irmão
Julio



SÃO LUÍS, PROVINCIA DO MARANHÃO, 22 de Junho de 1863

Caro Filho

Te peço perdão por te ter escrito uma missiva tão escassa em palavras; não tinha muito o que relatar a não ser as coisas de praxe, as atribuições da magistratura e os destemperos dos que se veem prejudicados ou esbulhados; por mais incrível que possa parecer, a política parece ter dado uma trégua por aqui, sem mais refregas;

Encontrei por esses dias o estimado amigo Coronel Galdino Póvoas, do Cotonifício Aliança, em Cururupu; recebi dele notícias de que está expandindo os negócios, com a compra de uma fazenda de café no interior da província de São Paulo, mas ao invés de escravos, está negociando a vinda de imigrantes para trabalharem como parceiros ou meeiros, do mesmo jeito que ele fez aqui, mas com os escravos; ele os alforriou a todos e os fez meeiros igualmente.

Aproveito para te passar uma notícia um tanto perturbadora; lembra-se do Alvarez, o merceeiro que morava alpegado à casa de teu amigo Zuza Marcondes? Pois é, ele e o pai do seu amigo tiveram uma altercação que até agora desconheço o motivo; e não é que o doido do Alvarez desafiou o Seu Alfeu Marcondes para um duelo na barra da praia do Caju? Os dois loucos chamaram dois amigos para serem padrinhos e se bateram a fogo de pistola, mas, para o bem de todos, os dois tinham péssima pontaria e não se feriram seriamente.

No mais não há muito a comentar, apenas uma família inglesa que se mudou para a nossa rua recentemente; nosso novo vizinho se chama William Charlton e veio acompanhado da esposa e da filha, uma bela jovem chamada Agnes. Creio serem católicos, pois os vi indo à missa na Igreja da Conceição alguns dias depois de chegarem

Cuide-se bem, meu filho, e dê o melhor de si nesse novo desafio

Que Deus te Abençoe
Abraço do teu pai

Aurélio



SÃO LUÍS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO , 28 de junho de 1863

Caro irmão

Agora sim, posso te contar os últimos mexericos da cidade, depois que uma constipação me deixou de cara inchada; o que me salvou foram as mezinhas de Eméria, prestimosa como sempre; nosso pai a tem em alta conta, e eu igualmente; daí posso te escrever.

Nosso pai com certeza já contou o duelo do seu Alvarez com Seu Alfeu Marcondes e da família Charlton, os nossos novos vizinhos; já conheci a filha deles, a bela Agnes, e posso dizer que fiz uma grande amiga; passamos o dia conversando e o pai dela se tornou bom amigo de nosso pai, parece que busca os conselhos dele como juiz, pois o senhor Charlton é representante comercial, negociando as safras de algodão de alguns fazendeiros.

Ontem vi a Marília e o Manduca Zacarias, indo à missa com o filho de colo; ela foi sabida e tratou de agarrá-lo de jeito! Mas imagino que tal mexerico não te interesse tanto quanto um que tenho aqui; os filhos do Major Faria, Lucio e Clara, chegaram de fresco de Paris; não me contive e fui visitá-los; eles me deixaram com água na boca por todas as novidades, especialmente as modas; Clara me pôs a par de tudo, desde os salões elegantes até algumas coisas que me fizeram corar; Lúcio estava mais garboso do que nunca em uniforme naval; ele disse que vai assumir um posto no quartel general do Arsenal de Marinha, pois diplomou-se em engenharia; mas nem pense que ele me fez sequer arfar; sabes o que eu sonho , meu irmão, e não abrirei mão disso;

Espero que as coisas estejam bem por aí; fico escutando os comentários de meu pai e do nosso vizinho senhor Charlton, sobre os negócios na região sul; parece que as coisas estão um tanto difíceis por lá; sabe que não entendo desses assuntos, por isso não irei prolongar-me neles. Na oportunidade mais propícia venha nos visitar, que eu prometo apresentar-te a Agnes.

Beijo afetuoso
Da tua amantíssima irmã
Amália

domingo, 9 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE VI



Eliza despertou, pela primeira vez, com uma inquietação que não sabia explicar...

Buscou dentro de si todas as coisas que fizera, tudo o que ocorrera nos dias anteriores desde que retornara de Belém; não gostava de deixar pendências, de qualquer tipo; procurou se lembrar, e foi aí que percebeu o que realmente a inquietava...

Fazia tempo que não sentia os pensamentos se desdobrarem de forma tão intensa; ela controlava cada coisa em sua cabeça como um computador, mas desde que o pai lhe dera essa missão que nada mais parecia sob controle; no trabalho, conseguia sempre a eficiência que exigia, até dela mesma; mas em casa, parecia que não tinha mais o controle de si...

Então, ela se lembrou...

Desde que ele chegara, era como se seu equilíbrio interno fosse deslocado; nada conversaram além do profissional e do trivial, apenas o vira fora do escritório no restaurante, mas havia algo no olhar que parecia dobrar quem o encarasse, algo de desnudar quem o fitasse...

Procurou tirar tais coisas da cabeça, pois teria um dia cheio no escritório, com muitos projetos chegando, especialmente o de restauração de uma casa, cujo dono queria que ela se tornasse moderna sem, contudo, alterar a estrutura original; o que fosse moderno teria de ser bem discreto; procurou colocar tudo em foco, discutindo com a equipe os aspectos da restauração e os termos do contrato com o cliente, pois queria usar esse trabalho como parte de uma campanha para consolidar ainda mais o escritório no mercado.



Ao chegar , percebeu que Eunice tinha uma expressão contrafeita, como se tivesse que transmitir más notícias; recebeu dela a agenda do dia, as pastas de projetos e o bloco de atas da reunião; não teria nada nas próximas três horas, assim poderia se dedicar a examinar os projetos em andamento; o cliente da restauração tinha excelentes conexões e um projeto bem-sucedido seria um algo a mais para o status da firma.

Sentou-se e só então percebeu o envelope sobre a mesa, na caligrafia inclinada e linear que reconheceu ser de Wagner; abriu-o e não conteve a surpresa...


No envelope, estava a carta de demissão dele; alegava motivos pessoais e a decisão era irreversível, pois alguns contratempos o levaram a tomar outra direção, mas que não havia , em momento algum, ressentimento ou mesmo qualquer tipo de desentendimento; apenas algumas contingências que o forçaram a não permanecer onde estava.

Mesmo no emaranhado de coisas que se passavam, conteve o impulso de perguntar a Eunice a razão dele ter se demitido; continuou com os afazeres do dia, recebendo potenciais clientes e resolvendo as pendências que esperavam; dentro de si, porém, o turbilhão de pensamentos parecia querer testar a força de vontade dela, sondando cada ponto em que pudesse desequilibrar; mas ela foi mais forte, esperando o expediente acabar para, assim, procurar saber o que havia acontecido.

Já se preparava para sair quando voltou a atenção para o envelope; pareceu perceber uma leve diferença de tom na aba, como se tivesse algo colado lá; era um envelope autocolante de tamanho médio, com aba simples; ela o pegou e examinou-o, percebendo algo escrito na borda inferior da capa; era um número de telefone, com algo que parecia ser uma frase; reconheceu a caligrafia inclinada e linear escrita a caneta...


A frase dizia : “Me ligue que eu explicarei minhas razões”

Pela primeira vez na vida, dirigiu com pressa, e, ao chegar em casa, não tirou os sapatos ao entrar; jogou a bolsa e o blazer no chão e correu para o quarto; a pilha de cartas estava como ela havia deixado, mas elas teriam que esperar; naquele momento, o celular era o que ela buscava com mais avidez...

(Continua...)

Créditos das ilustrações: Google Images

domingo, 2 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE V



SÃO LUIS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO, 01 de Maio de 1860

Caro Irmão

Que maravilha receber tua missiva! Estive imaginando o porquê de ficares de parcimônia em me escrever! Pensei que tivesse ficado zangado quando fiz menção de brigar contigo por causa de tua turronice quando fiz troça por causa de Marilia! No final, interesses acabam se encontrando; o Manduca Zacarias desistiu de vez de mim e arrastou a asa para ela, que , ao que se conta, já está cantando aos quatro ventos o noivado! Bom, assim as coisas se aquietam...

Espero que possas escrever de melhor lua, pois quero te ver sorrindo , sem essa de ficares macambuzio a cada tempo; sei que tens afinco em teus estudos e isso não te dá dores de cabeça; o que, então , te deixa assim tão triste? Espero que não seja por minha causa...

Te conto aqui um mexerico que peguei de uma amiga, a Cecília, cujo pai é escrevente do Tribunal da Relação, mas que o papai vai contar em breve; porém, não resisti e te conto de primazia: ele está pra ser nomeado Juiz de Paz, por merecimento!!! Quase o meu coração parou; nosso pai é um homem honrado e reconhecido como advogado, e é mais do que merecida a nomeação, mas não dê a entender que já sabes quando for escrever, viu? Segredo de irmãos...deixe ele te passar a notícia.

Não tenho muito mais o que comentar, apenas conversa de mulher, que tenho certeza não te interessa; não deixe de mandar notícias, meu irmão, e que Deus te guarde..

Beijo Afetuoso em tuas faces
Da tua irmã
Amália


SÃO LUÍS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO , 15 de Maio de 1860

Caro Filho

Escrevo para saber novas de ti; não entendi até agora por que as curtas notas que enviaste, como que estivesses sem assunto ou sem vontade de conversar; minha preocupação de pai é sempre no teu bem, jamais o oposto; quero apenas saber se as coisas vão em bons ventos, se os teus estudos estão em ordem e, principalmente, se tens feito tuas coisas direito; sei bem como é isso, já tive meu tempo de moço, com a cabeça cheia de ideias e sonhos e com todo o brio; mas temos de tomar tenência em nossas vidas e tomar nossas decisões para o nosso próprio bem;

Aqui na cidade, ao que parece, a calma reina; Cândido Mendes enfim assumiu a cadeira de deputado geral, mesmo com todo o dinheiro e as ameaças do coronel Izidoro; o mais novo rebuliço é o pipocar dos clubes abolicionistas, onde se misturam estudantes, jornalistas e alguns mais que começam a incomodar; a guarda já fechou alguns desses antros, mas no fechar de um, abrem-se outros; lembra do teu colega Juca Monforte? Aquele biltre fundou um desses valhacoutos e ganha cada vez mais gente para o lado dele! Nem rapou a primeira penugem e já se faz fumaças de líder; acreditas que tem gente que quer que ele seja vereador? Ora vamos! Um insolentezinho desses de assento na Câmara! Ora essa! U’a malta é o que eles são! Até o forro Elesbão, que tua mãe fez o favor de fazer liberto como vontade de testamento, anda a desfeitear todos! Para onde vamos desse jeito?

Bom, meu filho, deixe esse meu destempero de lado e procure dar acerto na vida; aqui fico esperando carta mais longa tua, pois apenas deixas um coração apertado de pai quando tens tanta parcimônia de palavras;

Só para contar a ti, fui nomeado Juiz de Paz do distrito de Anindiba, próximo do arraial da Maioba; assumi o posto há uma semana; novas coisas se revelam para mim, mas tenho certeza que minha fé me guiará no caminho certo. Espero que fiques contente com as boas novas e mande notícias logo.

Deus Te Guarde, Meu Filho
Abraço Afetuoso e minhas preces
Teu Pai 

Aurélio


RECIFE, PROVINCIA DE PERNAMBUCO, 06 de junho de 1860

Caro Pai

Por primeiro, aceite minhas escusas por delongar a resposta da carta que me enviaste mês passado; a razão da demora era porque eu estava acamado com uma forte constipação, que acabou quase virando pneumonia; tive de enfrentar aqueles terríveis sanapismos de mostarda, ventosas e  só não me sangraram porque me recuperei logo; assim, esta é uma carta para compensar as notas curtas que mandei; não queria apoquentá-lo com coisas que achei que fossem tolas, mas no final quase me abateram.

Fiquei muito feliz e orgulhoso com a sua nomeação a Juiz de Paz; o senhor indubitavelmente merece o posto, pois sempre foi um advogado de amplo domínio da prática e nada mais natural que o senhor fosse nomeado; me causaria estranheza se não fosse.

A situação é a mesma aqui, pai, mas com tintas mais fortes; há quem diga que alguns clubes abolicionistas estão organizando expedições para libertar escravos de fazendas e conduzi-los a quilombos ou mesmo para refúgios fora da província; a guarda aqui tenta recapturá-los sem muito sucesso.

Um colega aqui, o Jonas Almada, chegou recentemente da América. Tinha ido estudar leis, mas voltou porque o país está em estado de guerra civil, causada pela discussão sobre a escravidão nos territórios do sul; pois, segundo o que ele me disse, o sul está em guerra com o norte por essa razão; ouvi o relato dele e fiquei pensando: “tomara que não cheguemos a ponto de guerrear por escravos”

Continuo os estudos com afinco; quando estava acamado os colegas me ajudavam com os compêndios na cama; não fiquei atrás em nada, nem mesmo em direito romano, que, confesso, não ia muito bem; mas não levei bomba em nenhuma cadeira, isso eu posso garantir.

Não tenho mais para contar, meu pai, a não ser que os exames para o terceiro ano estão chegando e terei de me preparar bem, espero passar com boas notas.

Algo mais: minha próxima carta virá por um de meus amigos daqui, um paraense chamado Antônio Ribeira; ele deve resolver algumas coisas pessoais em Belém e passará por aí; se puderem fazer algo por ele, tenho certeza que ficará muito grato 

Recomendações e suas preces
Do seu filho
Júlio


RECIFE, PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO, 13 de Junho de 1860

Cara Irmã

Imagino que o nosso pai já deva ter contado a razão de eu me demorar tanto a escrever; não queria imaginar-te arfando pelos cantos em angústias e inquietudes; me feriria muito saber que ficaste assim; por isso não foi por turronice ou parcimônia, mas porque o teu irmão estava acamado e não queria te preocupar.

Com que então o Manduca Zacarias se arranjou com a Marília? Que bem arranjados fiquem; não me apoquenta qualquer coisa vinda deles; talvez, mesmo, bem se mereçam no fim das contas;

Me contes, recebeu o livro do Joaquim Manuel de Macedo que te enviei? Ele está a ser a sensação da cidade; recebi o exemplar do Rio de Janeiro e li-o de um fôlego só; é bom, mas acho que as moçoilas vão apreciá-lo mais; aqui os rapazes pelejam para memorizar poesia para fazer firula, mas fico a ver o ridículo disso; não me tome como sem sentimentos, mas é que tais coisas não me apetecem no presente momento. Espero que tudo esteja às boas e que apenas alvíssaras cheguem à nossa casa. Mande minhas recomendações aos amigos daí se os encontrar em tempo.

Terei mais o que contar na próxima carta; agora estou melhor, poderei escrever mais e contar mais coisas daqui; fique com o meu amor fraterno e minhas preces

Beijo afetuoso do teu irmão
Que te ama extremosamente
Júlio

segunda-feira, 27 de julho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE IV


Eliza pousou as cartas na cama cuidadosamente; não queria que elas de desfizessem por serem mal manuseadas; mas a leitura deu mais uma pista de Antônio Ribeira que começou a intrigá-la; mas queria dedicar-se a essas divagações com calma; precisava contatar a equipe e mais do que nunca inteirar-se do que se passava no escritório. 



Chegou como de costume, recebendo a agenda do dia das mãos de Eunice, a prestativa secretária; tinha duas reuniões, uma às 14 horas e outra às 17; antes disso passou a vista no briefing geral de atividades e chamou a equipe para uma conversa informal sobre os projetos em andamento; todos estavam lá, curiosos para saber do projeto em Belém; ela respondeu laconicamente, dizendo apenas que “o negócio não foi em frente”; foi quando notou, sentado ao lado de Marcela, a estagiária, um rosto novo: cabelos grisalhos curtos, olhos negros, óculos de aro dourado encimados por sobrancelhas retas; segurava a caneta displicentemente na mão direita, tamborilando levemente.
- Eliza, esse é Walter, nosso novo relações públicas, você o tinha aprovado há alguns meses atrás – apresentou-o Marcela – você tinha dito que a entrevista não era necessária porque você confiava no currículo dele.
- Eu lembro bem; muito obrigado, Marcela. Seja então bem-vindo, Walter; espero que tenha sucesso em seu trabalho; mas vamos pôr as coisas em dia, não? – disse, num sorriso.

Walter assentiu com a cabeça e juntou-se à conversa.

Ela estava satisfeita com os resultados do grupo. Na ausência dela vários bons negócios tinham sido fechados, o que era muito positivo e consolidava ainda mais a imagem do escritório como um dos mais bem-cotados do mercado; vária s vezes foi sondada para adquirir capital acionário, mas polidamente declinara, preferindo investimentos mais sólidos e menos arriscados.

Saiu do escritório por volta das oito e meia da noite; jantou no lugar de costume, com o garçom levando -a para a mesa favorita, no canto do restaurante onde ela pudesse ver o movimento de vai e vem dos clientes; sentir o movimento dos lugares a relaxava, antes de voltar para casa. Demorou-se um pouco mais, saboreando lentamente a torta de trufas que tinha vindo de sobremesa; levantou os olhos para ver o movimento e deu de cara com o novo relações públicas, que entrara devagar e escolhera uma das mesas perto da porta. Notou a economia de gestos ao chamar o garçom e fazer o pedido, ao mesmo tempo que, ao notar a presença dela, acenou; Eliza respondeu ao aceno ao mesmo tempo em que pedia a conta; tinha pressa em chegar em casa e ler o restante das cartas que ainda repousavam na cama; acenou novamente ao passar pela mesa onde Walter estava, chamando o manobrista para trazer o carro; uma vez nele, saiu devagar e tomou o caminho de volta para casa.


Os sapatos já estavam nas mãos dela quando girou a fechadura, entrou em casa, deixou o blazer sobre o sofá e sentou para relaxar; respirou fundo e deixou-se levar pelo conforto, espreguiçando-se devagar e deixando os pensamentos a conduzirem; de repente, se viu relembrando o momento em que Walter entrara no restaurante, os gestos contidos, o modo espontâneo de acenar; surpreendeu-se ao sentir aquilo, pois já há muito deixara de buscar atratividade em qualquer pessoa; quis conter os pensamentos, mas algo dentro dela fez com que deixasse o pensamento fluir...

Mas logo os olhos dela se voltaram para o quarto e para as cartas espalhadas na cama; deixou esse novo pensamento, ao menos por enquanto, de lado, e voltou a tenção pra elas; não as leria agora, elas esperariam mais um dia...

Buscou o sono, mas ele demorou a vir...

( Continua...)


domingo, 19 de julho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE III



SÃO LUÍS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO, 22 de Maio de 1858

"Meu Irmão

Deito estas linhas por razão de falar-te apenas do ameno, sem razão especial; espero que esta não te encontre em contratempos nem em outra qualquer tribulação; sei que teus estudos são prioridade e que os reclamos e amuos de tua irmã podem não ser considerados, mas te escrevo mesmo assim, pois somente em ti posso confiar, mesmo distante de mim.

A cidade ainda está debaixo de chuva torrencial; parece que os céus estão desabando!! Sei que já devia estar acostumada ao aguaceiro desse tempo, mas não consigo; as águas sempre me pegam de inopino, me dando susto atrás de susto; ao contrário de todos, a canícula me conforta, o sol forte me dá um alento que aos outros não chega.

Aqui não há muitas novas; apenas o Manduca Zacarias, com quem ficaste de cizânia por causa dos olhares de Marília, cansou-se dela e agora me faz a corte; imagine que os galanteios dele se limitam a dizer-me quão segura será minha vida se der a ele a honra de esposá-lo; diz ele que basta que eu peça que todas as portas se abrem, que todos os meus desejos serão atendidos, pois logo ele sucederá o pai como chefe da Casa Aviadora e uma carreira de vereador se abre para ele; Imagine! Nem uma palavra cortês, nenhum poema inspirado! Apenas uma verborragia de cifras e vantagens! Escuto-o apenas para distrair-me, pois ninguém conseguiu ainda tocar-me o coração, quanto mais esse declamador de números!

Nosso pai está em viagem, desta vez resolvendo pendências na vila de Barra do Corda, devendo voltar em mais cinco dias; na ausência dele, eu tenho de dar conta dos recados e mensagens e todos os cantos, anotar tudo e organizar a caderneta de assentos, mantendo-a em ordem até que chegue;

Te desejando sorte e bons estudos
Deus te guarde
Beijo-te amorosamente nas faces
Tua Irmã
Amália"



RECIFE, PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO, 01 de junho de 1858

"Cara Irmã

Desculpe não te deitar linhas tão logo, mas os estudos aqui me consomem por demais e o tempo me é mais verdugo que amigo; eu fico triste por não poder escrever no tempo que gostaria, mas somente agora posso fazê-lo, já te pedindo mil perdões por te escrever com tanta pressa assim, mas te prometo uma carta com mais assunto da próxima vez;

Poderia bem dizer que o Manduca Zacarias merece a sova de cadeira que dás nele, mas, se me permites um conselho, deixe ele em paz; não mereces um sujeito que não te inspira, nem mesmo penas; tenho certeza de que alguém fará teu coração saltar; no momento não tenho tempo pra tais veleidades; os estudos são a única amante que tenho e tão cedo não sei se meu coração desperta...

Diga ao nosso pai que escreverei com mais presteza daqui a mais ou menos cinco dias; não tenho igualmente muito a contar, mas logo darei mais notícias

Beijo do teu Irmão

Júlio"



RECIFE, PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO, 19 de Junho de 1858

"Caro Pai,

Espero que estas linhas o encontrem em paz e harmonia e que seus negócios em Barra do Corda tenho sido resolvidos a contento; aqui me divido entre os estudos e o observar da agitação politica na cidade, com os abolicionistas e republicanos gritando cada vez mais alto, e começando a incomodar o governo da província; colegas de curso inauguraram um clube abolicionista e queriam que eu me filiasse mas declinei, dizendo que não tinha estômago pra tais patuscadas; melhor seguir seu conselho e continuar meu caminho, mas é difícil ficar sem tomar partido por alguma coisa.

Pela primeira vez tenho um grande amigo por aqui; trata-se de Antônio Ribeira, vindo da província do Pará; de conversa boa e humor muito melhor, tenho-o ajudado a se adaptar às coisas aqui do Recife, mas vejo que não terei muita dificuldade, pois o mesmo não teve empecilhos em já aviar-se em tudo, dando conta bem rápido das coisas; pelo menos posso conversar sem ser troçado pelos outros por causa da minha neutralidade em relação aos republicanos e abolicionistas.

As notícias mais recentes que recebi vieram de Nestinho Menezes, cujo pai dirige um escritório comercial na capital da Provincia de São Pedro do rio Grande do Sul e possui estâncias de cria de gado e ovelhas na fronteira; as coisas não serenaram por lá depois de se guerrear uruguaios e argentinos; ele diz que continuam os ataques e roubos e que o exército imperial não tem nem efetivo nem moral pra lutar, a despeito do comandante de fronteira, general Osório, ser homem de escol e de grande coragem pessoal; a saída foi armar os peões e dar ordem de atirar sem misericórdia em qualquer um sem intenção declarada; assim estão as coisas nesse nosso país.

Espero que tudo esteja melhor por aí
Amor e Respeito
Sua Bênção
Seu filho
Júlio"


SÃO LUIS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO, 27 de Junho de 1858

"Caro Filho

O litígio em Barra do Corda se resolveu bem, sem mais contingências ; é como sempre digo: uma conversa civilizada sempre leva as coisas a bom termo e sem consequência séria para nenhum dos lados; assim se constroem a civilidade e os bons costumes.

As coisas não andam bem aqui em São Luis; as eleições estão para breve, mas a violência e a intimidação de eleitores continuam sem freio e sem uma autoridade competente, pois os juízes estão todos nas mãos do Coronel Izidoro Jansen Pereira, comprados pela mãe dele, essa sim a dona do dinheiro e do poder; acreditas que um sobrinho dela veio até mim para dizer que o meu apoio seria um grande incentivo à minha carreira, possivelmente com uma nomeação de magistrado? Respondi-lhe polidamente que iria levar muito a sério e daria em tempo certo a minha decisão; pense no descaramento! Principalmente depois que o adversário político do Coronel, o grande Candido Mendes, foi atacado na saída do Teatro União, após a apresentação de um drama lírico de nosso amigo Gonçalves Dias, e brutalmente espancado até quase morrer? Não se fala em outra coisa na cidade. De resto, todos estão bem; sua irmã manda recomendações e beijos e está preocupada com você; eu, de minha parte, só posso te desejar sucesso e perseverança nos estudos e que tenhas bom juízo na condução dos mesmos evitando aventuras sem sentido e pandegarias.

Sem mais novas e te desejando sucesso e felicidades
Abraço Paternal e recomendações
Do Teu Pai
Aurélio"


(Continua...)